16 de outubro de 2012

O ORÁCULO FAZ DO ACASO O CENTRO

Irving Penn | The Tarot Reader . 1944


Qual é a diferença entre um moderno experimento científico físico e um oráculo divinatório? Num experimento físico, o acaso é eliminado, é empurrado para a fronteira, o mais longe possível, e sobra um resíduo que não pode ser eliminado. No oráculo, adotamos um enfoque diferente, complementar, ou seja, o acaso é colocado no centro; apanhamos uma moeda, jogamo-la ao ar e a probabilidade de que caia de coroa para cima é a fonte de informação. Assim, num caso, a fonte de informação é constituída pelo acaso e, no outro, ele é o fator de perturbação que temos de eliminar. Eles são absolutamente o que, em moderna linguagem científica, chamaríamos de mutuamente complementares. Os experimentos eliminam o acaso, o oráculo faz do acaso o centro; o experimento baseia-se na repetição, o oráculo está baseado no ato único.


Marie-Louise Von Franz | Adivinhação e Sincronicidade.
Editora Cultrix, 1987.

5 de outubro de 2012

O GRANDE MOMENTO DA VIDA


Mas não sou abençoada nem misericordiosa. Eu sou o que sou. 
Tenho um trabalho a fazer. E o faço! 
Escute: enquanto conversamos, estou lá fora buscando velhos e jovens, inocentes e culpados, 
os que morrem juntos e os que morrem sozinhos. 



É engraçado, mas, em dias bons, não penso muito nela. A cantora Tori Amos começa assim o prefácio de MORTE, deliciosa coletânea de histórias de Neil Gaiman (VERTIGO, 1997) protagonizadas pela segunda mais velha figura dos Perpétuos. O número do azar na sorte da Estrada Real. Arcano sombrio. A Ossuda. 13.


Talvez seja impraticável pensar nela com alguma demora e gravidade, a menos que seja iminente sua presença. Não se fala sobre A Inominável. Sempre causa desconforto. Se você já foi a um velório, me entende. O mórbido incomoda. Talvez justamente por ninguém saber ao certo como é o ambiente pós-passagem – me perdoem os visionários e religiosos convictos, mas o Mistério se mantém. Há vislumbres. Experiências indizíveis que tornam ainda mais valorosa sua contraparte, essa tal Vida. O estar aqui [ainda]. No Tarô, o décimo terceiro Arcano Maior trabalha por procuração. Ininterrupta. Geralmente horrenda, como manda a Peste iconográfica. Aparição temida. Pior é quando se pede o caráter de alguém e surge a Nefasta: aí tem, e o que tem não é brinquedo. Mas curioso é passear pela carta celeste pessoal e se deleitar com os infernos. Sim, estou falando de Astrologia. Digo suspirando que visito minhas Luas e alimento meus Escorpiões. Meu mapa tem [vários] tons de underground que me permitem transitar pelo negro com relativa harmonia. O macabro pode ser poético se houver cuidado e intuição. Convém lembrar de Saturno, que colabora com o verbo ceifar. Inerência. Já mapeou-se? E aonde fica o seu submundo? 


Relendo Death, de Frieda Harris.
Aleister Crowley Thoth Tarot | AG Müller, 1986.

Nas cartas de papel, voltando ao nosso oráculo visual do mundo, confesso ter um apreço extra pela Indesejada. A anatomia que Frieda Harris imprime é fascinante. Os bichos de baixo são importantíssimos. Manjar de peçonha para celebrar nossas catacumbas. Já Waite e Pamela Smith suscitam humor negro com a figura religiosa implorando por clemência. E causam ternura pela garotinha oferecendo flores ao cavaleiro negro. Inocência. Eis o grande momento da vida. Não há risco a cada passo? Sim, há. Riso também.


DEATH, poesia visual de Pamela Colman Smith.
Rider-Waite Tarot | US Games, 1971.


HADES EM MINIATURA

Morte é uma lição de escuridão. Já desmaiou? Eu já, e é estranhíssimo. Falei nos vislumbres e lembrei que sempre relacionei o morrer à síncope, que no grego súgkopê significa 'corte, fragmentação em pequenas partes'. Pequenas mortes? Só sei que a experiência é o cúmulo do conforto, pelo menos até o momento em que se emerge desse sono divino. Dói voltar. Thánatos, do gênero masculino no mesmo idioma, é irmão de Hipno, o próprio sono. Significa 'dissipar-se, tornar-se sombra'. Etimologicamente, cavalgamos até equívocos e inovações que nos fazem chegar a 'morrer' no sentido de 'ocultar-se'. Ser como a sombra. Esquecemos [ou não nos damos conta] de que na Grécia o morto era eidolon, um retrato de brumas. Insubstancial. Tecido projetado do que um dia respirou. Simulacro. 




Mas veja, o que interessa aqui é a descida. Morte, numa leitura intimista [como se houvesse alguma que não fosse], nos faz um convite à catábase. Coisas a serem revistas, repensadas, reorganizadas, rechaçadas. De simples a Jornada do Herói só tem o roteiro. Inenarrável quando se fala do Vale de Sombras; um presente sempre diferente. A floresta negra sempre se bifurca. Chama e engole. Degrau a degrau, até o fundo. Daí o questionar de cada instante e atitude. Momentos memoráveis aqueles em que a foice vem rente aos olhos. Alerta vermelho à crisálida. A limpeza da alma deveria passar pelo porão. É a lâmina que extirpa o negativo e o regressivo ao mesmo tempo em que nos libera. 

O que te mata, te fortalece [o espírito]. Esquecemos do poder de renegeração, ainda mais que o termo transformação continua sendo moda nas casas e publicações esotéricas. E aí o palpável também fica no escanteio: morte é símbolo. Coisas morrem, sentimentos. Falta uma didática do perecível, não acha? Cada dia passa com mais coisas abarrotando armários.  A Ceifeira sorri a todo e qualquer desapego, tenho certeza. Deixar apodrecer é tão divino quanto criar. Morte é oportunidade, não um fim em si. Nos abre portas, por mais difícil que seja cruzar o reino de baixo. Negligenciamos a riqueza do deus temido; Plutão, aqueles que poucos cultuavam e que rege as mais belas sagras. O que reluz brota do breu. Símbolos complexos ao longo das eras. Valiosos a toda e qualquer existência significativa. Faz valer a concepção da soberana que porta a vida: Não tem Death como adereço primordial o ankh no pescoço? Não determina nada, apenas faz o seu papel. Gentileza contida. Amor concentrado. Mors ianua uitae. Parteira na escuridão. 




The Sound of Her Wings, em The Sandman: Preludes & Nocturnes. 
Vertigo, 1995.

Embora seja o hades um univeso em si, Neil Gaiman não fornece coordenadas geográficas precisas sobre os domínios de Morte. Gênio. Assim deve ser. Em algumas histórias paralelas, quando encarnada [a fim de sentir melhor seu ofício], administra um apartamento bagunçado, mas nada proporcional ao reino de Morpheus, aos jardins infinitos de Destino ou as salas lúgubres de Desespero. Nem ao antro de arco-íris, peixinhos cantores e sofás de caramelo de Delírio. Mas o engraçado mesmo da nossa girl next door é que todo mundo a imagina de alguma forma, que logo se esvai. Antropomorfa, mas volátil. Par a par com o Diabo, cada dia mais diáfano. Forças, nem sempre personificações. 


O QUE SE LEVA DESSA VMIODRATE



The Universe is Change; every  Change is the effect of an Act of Love; all Acts of Love contain Pure Joy, tece crowley em seu Book of ThothPois é, guarde bem: A Morte, Arcano Sem Nome, prescreve o enigma no clichê: aproveite sua vida, ela é o grande momento. Aproveite com [todo o] amor: Eros é tão visceral quanto Thanatos. A parteira, a última a morrer, pode esperar. Intermitente. Haverá sempre o encontro marcado com cada um. E então a dança.  Terrível e linda em proporções aproximadas. E já que todo eufemismo é mero conformismo, todo mundo a concebe.  E o melhor é que, cedo ou tarde, todo mundo a descobre. Cheiro de flores brancas ou chama azul no canto do olho. Plural e única. Certa.



Death | The Vertigo Tarot.
Dave McKean. DC  Direct, 2001

http://instagr.am/p/QZ-TLhB_FP/

Mesmo em dias muito bons, penso um tanto nela. Engraçado.
Só sei que este ensaio nunca nasceu, mas sempre esteve aqui. Tal qual ela, atenta. Vai dedicado à minha irmã mais velha amiga Giane Portal, oráculo Vertigo indiscutível, que esteve comigo enquanto lia toda a jornada de Sandman – tipo Death acompanhando Dream pelos reinos e praças, alimentando os pombos. Permeia o acaso objetivo, se penso em Breton. What are you doing? Harmonia existencial. Supercalifragilisticexpialidocious! E vem às vistas justo agora que Saturno entra em Escorpião.

Curiosamente.



Die daily,


L.