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14 de julho de 2012

E NO TARÔ ESTÁ ESCRITA UMA CIDADE.




Kublai Khan: – Fale-me de outra cidade – insistia.
Marco Polo: – ...O viajante põe-se a caminho e cavalga por três jornadas entre o vento nordeste e o noroeste... prosseguia Marco, e relatava nomes e costumes e comércios de um grande número de terras. Podia-se dizer que o seu repertório era inexaurível, mas desta vez foi ele quem se rendeu.
Ao amanhecer, disse: - Sire, já falei de todas as cidades que conheço.
– Resta uma que você jamais menciona.
Marco Polo abaixou a cabeça.
– Veneza – disse o Khan.
Marco sorriu.
– E de que outra cidade imagina que eu estou falando?


ITALO CALVINO | As Cidades Invisíveis, 1972.




Minha relação com cidades costuma ser sempre visceral. Alguns amam pessoas ou livros e passam a vida tentando decifrá-los, publicar sobre gente ilustre ou filme e até obter doutorado para falar com toda a propriedade sobre determinado evento ou criatura. Já eu tenho com cidades, mesmo. Sei que é interminável esse trabalho, mas ele se mantém. Como se elas fossem personificações, se é que não são. E Veneza é minha preferida. Quem me conhece bem, bem sabe. Uma cidade que é uma pintura. Mise en abyme absoluto, confunde os olhos e as verdades interiores. Aperta o coração. Mesmo depois de três viagens feitas até lá, não consigo descrever o que senti. E não falo devido à beleza indiscutível e à pompa que o turismo confere ao Vêneto todo, mas pela atmosfera e pela história. Pelo enigma.



Marco Polo deixa Veneza em 1271. Iluminura do século XIV.

Um dos meus livros favoritos de Italo Calvino é justamente um dos seus mais famosos: As Cidades Invisíveis. Marco Polo é o veneziano que tece as cidades em frente ao Grande Kublai Khan, imperador de tudo, a fim de ilustrar as maravilhas de seus próprios horizontes. É Veneza a raíz das narrativas de Polo, sempre será. O eterno viajante jamais esquece suas origens. Assim com o tarólogo, que nunca se perde de onde vem. O primeiro baralho é crucial ao desempenho futuro, acredite.

Aspettando l'Ariuo di Marco Polo | Juarez Machado, pintor brasileiro.

E por falar nelas, nas origens, Veneza era o link entre a Europa e o Oriente. É Dai Léon, em seu tortuoso Origins of the Tarot (Frog Books, 2009), que afirma ter sido a jóia do Adriático o maior centro italiano de importação de cartas. Graças ao comércio dos mercadores venezianos que as cartas de jogar se tornaram conhecidas nas cortes do Norte da Itália. Veneza foi forçada a se tornar o sultanato mameluco em Alexandria para então poder ser agraciada com os bens do Oriente. Também fez escambo com Istambul. Competição acirrada com Portugal. Portos e portos, negociações. A nobreza, as iguarias. O tempero de Veneza é alquímico. Era o umbigo cravejado de encantamentos do Velho Mundo. Lenda viva, nunca afunda. Poderíamos dizer, a partir das teorias de Léon, que sem Veneza não seríamos nada. Os arcanos teriam tomado outros rumos, talvez. Ou não. Ou sim.

Qual é a sensação de embaralhar uma cidade? Quebras das linhas dos mapas, contornos. Variações de becos e flashes de praças e bairros e vias. Quando se embaralha Veneza, no entanto, difere em tudo.



Vi o Tarocchi di Venezia há alguns anos quando navegava pelos mares do Aeclectic, maior catálogo virtual de baralhos e resenhas, absolutamente confiável. Procrastinei tanto  a compra que por fim, logo depois da minha palestra na II Confraria Brasileira de Tarot, decidi acabar com a distância e o recebi das mãos de Priscilla Lhacer, do Amor Próprio, a melhor importadora de baralhos do Brasil. Felicidade por ter Veneza mais perto. Concebido por Davide Tonato, pintor surrealista veronês, o projeto teve a idealização de Giordano Berti, uma das maiores referências italianas em história do Tarô. A partir desse fato [já que sou um ávido devorador do trabalho de Berti], acabei constatando o empenho e a coerência do projeto ao elencar personalidades venezianas em cada uma das setenta e oito molduras. O passado configurando o presente e o futuro. Quer melhor oráculo que a própria História?


Il Matto, o nosso querido Louco que estampa a embalagem consistente que só a Dal Negro faz, é nada menos que um Arlecchino, ícone da Commedia dell'Arte, que por sua vez serve de base para o estudo dos 'arquétipos' cenográficos. Va bene, se fosse só isso seria bonita a associação entre a figura cômica e o Arcano Sem Número. Ponto. Mas o augúrio vai além e se ramifica na paisagem: o Arlecchino se equilibra sobre um barril sobre o mar, bem à frente da ilha de San Servolo, o manicômio de Veneza. A partir daí, a coisa fica séria.

 


Il Bagatto, ou Mago, é Giordano Bruno. O cenário? Piazza San Marco, o chão feito de memória e poemas. Portia, a juíza d'O Mercador de Veneza, encarna o oitavo Arcano. É Shakespeare eternizado junto à Ponte dos Suspiros. A matemática Elena Cornaro Piscopia rege La Fortuna sob a torre do relógio astrológico, foto obrigatória a qualquer visitante. La Morte surge esvoaçante na igreja de San Rocco lançando seu manto negro metáfora da peste de 1603.



Galileu Galilei, n'A Estrela, mostra ao doge Leonardo Donato um novo instrumento de observação: o telescópio, em 1609. Carlo Goldoni, que tive o privilégio de estudar durante o curso de Storia del Teatro quando morei na Itália, aparece divinamente homenageado no Sol: Zanetto e Tonino ainda meninos, protagonistas da peça I Due Gemelli Veneziani, fazem alusão aos tarôs clássicos. A iconografia veneziana dialoga com a tradicional. Grande sacada dos compositores do maço.

 

Por isso digo que não é apenas um Tarô para marcar nome. É uma obra de Arte que é homenagem que é coerente. Coerência simbólica, bato nesta tecla. O respeito à estrutura convencional do Tarô, hoje em dia, tende a ser o diferencial. Quando há, que felicidade. Quando não, cuidado. Sempre muito cuidado. Analogias são bem-vindas, mas como possibilidades, nunca verdades absolutas. Assim o artístico se mantém. Alimenta o lúdico, o humano.

Mas estar em Veneza é estar em casa. Literalmente. E nos Menores, a prudência de Tonato e Berti se mantém. Marco Polo vestido com armadura encabeça o Valete de Paus, prestes a embarcar para combater a frota da República de Pisa. Aretino, poeta de luxúrias e veneziano por adoção, surge no Quatro de Ouros. Casanova, o libertino mais famoso de Veneza, circundado de belas moças num jardim, alegra o cenário delicioso do Nove de Copas. Nas Espadas, surge o leão alado de São Marcos portando o estandarte da cidade. Ás: VENETIA VINCIT. No 10, Napoleão Bonaparte como o libertador do povo se faz presente matando a República de Veneza, quando em 1797 a dá de presente à Áustria. Um espetáculo analógico que passa por Murano, Lido e faz de toda a laguna o Universo. Anima mundi.

O começo da aventura: desbravando o deck. | Instagram @leochioda


E as personalidades continuam. Pesquisa histórica bastante nítida e sugestão de leituras. Sempre mais leituras. Difícil acreditar em quem lê o Tarô pelas vias da facilidade a qualquer custo. Alguém conhece uma cidade inteira em apenas um dia? Nunca.

Primeira jornada: julho 2008.


Ler o Tarô, qualquer Tarô, requer dúvida, coragem e atenção. O poder das narrativas é tão forte como sair em plena solidão pelas vielas de uma cidade. Perder-se pelos becos da interpretação, sugerir atalhos, reconfigurar o mapa interno. O sangue fala mais alto quando você descobre que um dos seus tataravôs era gondoleiro. Daí que meu caso de amor com Veneza é visceral. Penetrar as fondamenta com o ímpeto de desbravador e tornar a cada calle do caminho convencional permitindo um olhar mais generoso. Tarefas de um viajante, não de um mero turista. O viajante lê cidades. E nunca diz, com propriedade inabalável, que as conhece de fato. Afirma que as tem, no entanto. No coração, na imaginação.

Carta Alta | Maschere Veneziane. Que tal uma com Visconti-Sforza? 


O Tarô é um exercício de raízes.
E mesmo depois de três longas visitas a Veneza e dos sonhos constantes [com os mercados, os cafés, os vidros, os mouros, os barcos, os leões, as caravanas e os espíritos], eu a tenho agora em minhas mãos, como espelhos de exato diâmetro e espessura. Cidade é reflexo. O símbolo máximo do homem. Contém tudo. Todos.


Marco Polo Voyage | O trajeto até Kublai Khan em selos franceses.


O Tarô, ele próprio, é uma cidade. Difícil acreditar em quem o lê pelas vias da facilidade a qualquer custo. Alguém conhece uma cidade inteira em apenas um dia? Nunca. Ler o Tarô, qualquer Tarô [que fique claro] sob qualquer sistema, requer dúvida, coragem e atenção. O poder das narrativas é tão forte como sair em plena solidão pelas vielas de uma cidade desconhecida. Perder-se pelos becos da interpretação, sugerir atalhos, reconfigurar o mapa interno exige ousadia. Aventura. Atentar às paisagens dos baralhos favoritos desemboca em novas cidades, já percebeu? Invisíveis, a princípio. Mas íntimas. Mundanas. Humanas em sua extensão e perímetro. Tal qual um coração. 

Somos Marco Polo quando abrimos as cartas sobre uma mesa: desbravamos símbolos de nós mesmos aos outros, traduzimos o desconhecido. O Tarô é uma viagem, uma procissão, um carnaval, uma frota, uma companhia de teatro. E nós somos os escritores, os roteiristas, os poetas das circunstâncias. Atores, dramaturgos, pintores. Cabe a nós os registros das Rotas, desde as origens até depois dos destinos.


E Veneza é meu coração. De vidro e água.
Outras cidades surgirão.
Ah, sempre.



L.


_________________________
AONDE ENCONTRAR O TARÔ DE VENEZA?

26 de junho de 2012

TARÔ É POESIA


Em gaiola tão estreita e tenebrosa
fui metido, e ante tempo e idade
mudei as penas e a cor fermosa;

e contudo, sonhando liberdade,
alma, que o desejo faz pronta e leve,
consolei com ver tanta variedade.

Olhando, eu me tornava ao sol de neve
em ver quantos cativos Amor traz
quase longa pintura em tempo breve,

que os pés vão diante e os olhos atrás.





Esses versos são do TRIUNFO DO AMOR, de Francesco Petrarca. A tradução é atribuída a Camões, lançada aqui no Brasil pela Hedra, em 2006, numa edição bilíngue. Sabe o preço? Em torno de R$20,00. I Trionfi é peça literária fundamental para os estudos dos arcanos. Já tem o seu?


Una bella lettura,

L.

29 de março de 2012

O LOUCO


UM ESTUDO ICONOGRÁFICO DE ANDREA VITALI


Il Folle | I Tarocchi di Ercole I d'Este, Ferrara, séc. XV.

A loucura, de acordo com a concepção comum, é o “agir sem razão”. Cesare Ripa, famoso iconógrafo perugino, assim define a “Pazzia” na Iconologia de 1603, sua mais importante obra: "Não é nada além de louco aquele que, segundo o nosso modo de falar, faz as coisas sem nenhum decoro e fora do uso comum dos homens por privações de discurso sem razão verossímil ou estímulo religioso". No Evangelho, o homem que não crê é considerado louco, e assim, várias figuras de loucos acabam aparecendo nas bíblias dos séculos XV e XVI com o intuito de ilustrarem o Salmo 52 "O tolo diz em seu coração: não existe Deus!".



Gravura antiga do Louco



(1) A figura do Louco. Xilogravura da Biblia Sacra Vulgatae Editionis Sixti Quinti Pont. Max. (Veneza, Damianum Zenarum, 1603).





Foi encontrada em uma bíblia do século XVI a mesma representação do louco que se encontra no Minchiate de Firenze (figura 1): um homem vestido com trapos, com penas nos cabelos e um cavalo de pau; tem em uma mão um giro e em torno dele aparecem crianças (figura 2). Ripa fornece uma idêntica descrição: "Um homem de idade viril e de vestes longas estará rindo e cavalgando sobre um pau, tendo na mão direita um gracioso instrumento giratório feito de papel e rodeado por crianças”. (figura 2b)



Il Folle no Minchiate de Firenza O louco na obra iconográfica de Cesare



(2) "Il Folle" no Minchiate de Florença (sec. XIV) e (2b) na obra iconográfica de Cesare Ripa (1560-1622)



O riso do Louco que se encontra no baralho de Carlos VI e no de Ercole I d'Este é, ainda de acordo com Ripa, "facilmente indício de loucura, segundo o dito de Salomão; mas se vê que os homens considerados sábios pouco riem e Cristo Nosso Senhor que foi a verdadeira sabedoria e sapiência, não ri jamais". Uma gravura anônima de 1500 mostra um louco que ri diante de um anjo que fecha os olhos com as mãos para não ver tanta vilania (figura 3).



Na lâmina do Visconti-Sforza, o louco traz as penas sobre a cabeça e carrega um bastão sobre o ombro (figura 4). Uma figura similar foi pintada por Giotto na Capella degli Scrovegni na cidade de Padova, como uma figuração da Stoltitia (Tolice) (figura 5). Nesta gravura, o louco tem entre os lábios um objeto que praticamente o impede de falar. O conceito de loucura nesta alegoria vem ampliado pela presença das plumas sobre a cabeça do personagem. É prudente considerar que asas, plumas e penas representavam, para os antigos, os símbolos da velocidade.



Louco - gravura de 1500 O Louco no Tarô Visconti Sforza Pintura Giotto



(3) Gravura anônima de 1500, (4) o Louco no Tarô Visconti Sforza e (5) a "Estultícia" de Giotto



Vincenzo Cartari (1531-1569), famoso mitógrafo italiano, em sua obra Imagini de gli Dei de gl'Antichi (1647) trata repetidas vezes dos atributos de Apolo-Sol. Entre estes as asas e as plumas também significam a velocidade da inteligência de Apollo e do percurso do Sol. A propósito da presença de plumas sobre a testa de Mercúrio, o autor se explica desta forma: "Foram dadas as penas a Mercúrio porque no falar, de quem era o Deus, as palavras voam pelos ares como se tivessem asas. Homero sempre chama pelas palavras velozes, aladas e que portam penas". As penas presentes sobre a cabeça do louco representam portanto, o que falta a ele próprio, que é a velocidade da inteligência e do intelecto e também das palavras adequadas. De fato o lacre na boca do tolo, como concebeu Giotto, assume essa função, pois se não o tivesse, diria apenas tolices, como descrito na passagem bíblica "O tolo é arruinado pela própria língua. As primeiras palavras de sua boca são besteiras e o fim do seu discurso é loucura" (Eclesiastes 10:12, 13).



No tarô de Ercole I d'Este, o Louco aparece praticamente nu. Devido a isso, Ripa escreve que “a Tolice se pinta nua porque o louco releva os seus defeitos a todos, sem vergonha alguma". No dito tarô de Carlos VI, o Louco porta em sua cabeça um gorro com duas grandes orelhas de burro que por sua vez referenciam sua natureza bestial e veste uma modelo de cueca incrivelmente moderno (figura 6). A imagem é bastante similar a uma de outro Louco estampado em um documento bolonhês da segunda metade do século XV (figura 7) que traz só o bastão, mas de modo que pareça perfurar sua mão (relação alegórica, portanto, às chagas de Cristo).



O Louco no Tarô Carlos VI (Gringonneur) Louco - gravura do sec. XV O Louco "Misero" no tarô de Mantegna



(6) o Louco no Tarô Carlos VI, (7) em uma gravura do séc. e (8) no Tarô de Mantegna



Uma variação iconográfica sobre a representação do Louco se encontra também no dito tarô de Mantegna, onde a figura de um miserável acaba sendo agredida por um cão na panturrilha (figura 8). Esta tipologia figurativa permanecerá estável em todas as produções seguintes do tarô. Acima do bastão apoiado sobre o ombro aparecerá uma espécie de trouxa. A presença de um cão próximo ao miserável viajante é típica na arte figurativa medieval, não se distanciando muito da realidade objetiva, quando esse animal ladrava e avançava sobre os vagabundos que se aproximavam das casas para pedirem caridade. Um famoso exemplo se encontra na representação do Filho Pródigo (figura 9) e do Caminho da Vida no famoso tríptico de Hieronymus Bosch. Interessante notar uma figura do século XV de Israel van Mecknem (fugura 10). O simbolismo diabólico relacionado aos instrumentos de sopro - flauta e gaita de fole, em oposição aos "celestes" instrumentos de corda - confirma o caráter negativo da gravura. Por outro lado, a presença do cão aproxima a natureza do bobo à do miserável, criando uma ponte entre as duas variantes iconográficas.



O Peregrino de Bosch O Louco numa gravura de



(9) "O Filho Pródigo" de Hieronymus Bosch e (10) gravura Israel van Mecknem (séc. XV)



Neste ponto se considera um outro aspecto da loucura, aquele ligado à visão místico-sagrada. A Epístola aos Coríntios teve no Renascimento uma grande importância. Alguns de seus passos refletem a relação existente entre a Loucura e o Divino: "A palavra da Cruz para aqueles que se perdem é uma loucura" (I, 1, 18); "Não se enganem: se alguém entre vocês acredita ser sábio pela sabedoria deste século, torna-se tolo por ser sábio. Pois que a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus" (I, 3, 18-19). Somente a renúncia de si e dos próprios bens materiais poderia, segundo o pensamento cristão, conduzir o homem a Deus. O louco, por essa razão, era às vezes considerado um inspirado, portanto, prostrado a um passo da divindade.



Sobre essa divindade do louco em relação ao tarô, é esclarecedor um soneto anônimo do século XVI descoberto na Biblioteca Estense, em Módena. Para conquistar o coração de uma dama da corte, o autor anônimo afirma que é necessário extrair uma carta do maço apenas: a do Louco, “aquele da cabeça divina”. Por esse motivo a mais antiga lista de tarôs conhecida, o Sermones de ludo cum aliis, acomoda "El matto" junto a "El mondo", isto é, a Deus Pai.



O pensamento escolástico, que desejava valorizar a verdade da fé por meio da razão, acabou incluindo à categoria dos loucos, como já evidenciado, todos os que não acreditavam em Deus. E no tarô a presença do Louco conquista um significado ainda mais profundo: enquanto possuidor da razão, mas não crente, ele deveria se tornar, através dos ensinamentos contidos na Escada Mística (veja), o "Louco de Deus", como se tornou Francesco, o santo popular da cidade de Assisi, que foi chamado: o Santo Louco de Deus. O louco, sem numeração nos maços históricos, transita entre o profano e o sagrado, capaz de coabitar a miséria e também de gozar a transcendência.


Tradução do italiano por Leonardo Chioda e publicado originalmente no Clube do Tarô.

Andrea Vitali | LE TAROT Associazione Culturale

17 de setembro de 2011

TARÔ NA COZINHA

Tenho uma relação mais que afetiva e acadêmica com a Itália. É genealógica, espiritual. A stregoneria, o malocchio, os benandanti e as peregrinazioni daquela terra são mais que elementos culturais. São ingredientes que aprendi a pesquisar e a questionar com mais afinco a partir do contato que tive com Ludovica, no tempo em que morei na Úmbria. Mas também, de certo modo, sempre evitei falar. Uma postura bastante solitária, confesso, mas essencial para não perde il filo, a conexão primordial, digamos assim, com o meu reino ancestral. Até porque, chi cucina ha regole, misteri e segreti che non svelerà mai*. Ocorre o mesmo com as práticas do espírito.

O tarô, peça-chave do altar que carrego no peito, são os chamados tarocchi (se lê "tarôqui", assim como o meu sobrenome, Chioda, que equivale a "Quioda"). Esse termo em italiano ressoa mais forte quando pronunciado, percebe? Talvez sejam as raízes vibrando no alto dos montes do centro da bota, onde tudo começou. Pois então, são esses mesmos ingredientes - esses símbolos - compõem a távola das matronas, que empunham tal qual o Mago la pasta que inspira o divino no paladar dos mortais.

Morena Poltronieri, Stefano Biolcati e Antonella Melandri, três estudiosos da cozinha e dos tarocchi, criaram um verdadeiro livro de receitas arcanas. La Cucina dei Tarocchi é uma publicação apetitosa para quem aprecia um bom prato, um bom vinho, um bom livro e, obviamente, uma bela leitura de cartas.



Que tal um filé para honrar O Imperador?
Ou uma massa d'A Estrela, com direito a creme? Vão nove ovos e o suco de um limão, anotem.
A arte da cozinha é a arte mágica por excelência. É por entre as panelas que os deuses nos espreitam.

Va bene, lavoriamo. Enquanto tomo meu café reviro o maço
pensando em qual carta virá trazendo uma receita.

Qual o sabor e o aroma dos arcanos?
Bacio a tutti,


L.

Questo è per te, Ludo.
Non avevo trovato questo libro a Perugia, ma ora è qui con noi.

La nostra magia è propriamente la nostra magia, vero?
Andiamo sempre. Caminare è potere.
Un bacio sulla tua eternità.


* quem cozinha tem regras, mistérios e segredos que não se revelarão nunca.
.

19 de julho de 2011

UMA ODISSÉIA MEDITERRÂNEA

Para ler ouvindo Loreena Mckennitt - A Mediterranean Odyssey.
Clique nas imagens para vê-las no tamanho original.



O Tarô é uma grande e longa viagem. Quem desconhece essa afirmação desconhece a própria natureza dos arcanos, que num vislumbre rápido pode sugerir o galope dos cavalos d´O Carro, por exemplo. Ou do próprio Louco, andarilho por excelência, aquele que desfruta dos caminhos como se fossem pêssegos suculentos num dia quente entre o sol e a sombra de uma árvore sábia. Estou há quinze dias na Europa e me dei conta do quão o itinerário traçado é exótico. Mediterrâneo.

Valete de Ouros do Scopa, jogo tradicional italiano, em Siracusa.
Il Sole, loja arcana na Taormina.


Houve a Andaluzia, onde
 João Cabral de Melo Neto me cantou os poemas da Sevilha e me vi bêbado com a magia flamenca dos azulejos coloridos. Na Itália a eterna Roma e depois a Umbria e a Calábria, até provar os perfumes de Sorrento em cada limão, sorvete e prato típico. Já foi a vez da Sicília, em que Taormina recebe os turistas com seus arcanos em riste, tal como é a cidade. Falo dos arcanos porque em cada ponto dessa viagem eles aparecem. Foi lá que avistei o bar IL RE DI BASTONI, onde do lado de fora havia uma placa toda estilizada e, dentro, uma camiseta vermelha com o arcano em destaque. Pirei na hora. Era a última sendo vendida e veio parar nas minhas mãos.




Il Re di Bastone, um pub na Taormina, com direito a camiseta.

De lá, uma boa história pra contar pros sobrinhos-netos: mais uma peregrinação até a boca de um vulcão. Desta vez o Etna, o maior do continente. Caminhar sobre as pedras frias de lava e dar-se conta da atmosfera marciana do ambiente, é possível ir aos limites do que se pensa enquanto viajante. Enquanto arcano vivo. O Louco ali.



O Etna que explode a todo instante e faz o coração vibrar.

Depois de visitar os templos de Jupiter, Zeus e Hércules em Agrigento, onde colhi pedras e azeitonas para uso mágico posterior, foi a vez da caótica cidade de Catania me surpreender. Na entrada do Caffè Pepe, encontro um arcano no chão: LA GIUSTIZIA. Um estado de serenidade logo tomou conta de mim naquele calor de 38 graus. Ofício e caminho validados pela portadora da balança.


Arcano VIII do 'Tarocco Indovino' (Dal Negro)

aparentemente lançado pelo jornal italiano La Repubblica.

Uma
strega me disse que quando uma imagem se repete, o espírito do que ela representa se perpetua. É, tem sido assim. Trunfos em cada lugar que visito. Aliás, as cidades são mensageiras. Aonde quer que você esteja, sinta o lugar. Nem sempre pode ser agradável, mas a experiência é que faz a diferença. O tarólogo, assumindo o seu papel de Andarilho, tem o poder de (re)conhecer os arcanos em uma manifestação folclórica, na decoração de um ambiente e também na estrutura social e no modo como as pessoas se comportam. As figuras das quatro Cortes condensados em cada um de nós.


Nos jardins do Real Alcázar, em Sevilha.

Sigo com meus arcanos de viagem.
Aliás, quais são os seus?


L.

18 de junho de 2010

Fecha-se o caderno.



Para ti, saberás, não há descanso,
A paz não é contigo nem fortuna:
O signo assim ordena.
Pagam-te os astros bem por essa guerra:
Por mais curta que a vida for contada,
Não a terás pequena.

SIGNO DE ESCORPIÃO | José Saramago
(1922 - 2010)
in Os Poemas Possíveis
Editorial Caminho, Lisboa, 1982.


Foi um susto.
Anteontem descobri os poemas dele.
Vasculhei a internet e soube que Os Poemas Possíveis e Provavelmente Alegria, os dois volumes de poesia, não estão nas prateleiras do Brasil. Pela Einaudi, casa de livros italiana, saiu o Le Poesie, reunião dos dois títulos que trazem ainda os originais em português. Minha chance. Ontem fui correndo até a livraria antes que fechasse. Voltei feliz pra começar a entranhar os escritos hoje. Hoje, justo o dia em que Ela foi visitá-lo.


É, são as intermitências.
Por que as coincidências, tsc tsc, não acredito nelas.


L.



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O ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA NO TARÔ
CLIQUE AQUI

2 de abril de 2010

29 de março de 2010

UNA BELLA DOMENICA



Estou morando em Perugia, na Itália. Aqui a vida é do jeito que eu gosto, com seus horários, tempos vagos pra preencher com caminhadas, estudos e trabalho no conforto que me é concedido. Vim também com a intenção de pesquisar e garimpar material sobre tarô pra acrescentar uns temperos a mais no que se anda produzindo no Brasil.

Confesso que os meus compromissos e também a fotografia consomem tempo demais pra me dedicar especificamente a essas ideias. Mas existe a fúria. E existem os acasos e as surpresas, que me fazem ainda mais feliz nesta terra tão capricorniana já enraizada no meu peito.



Outro dia tive um sonho: viajava até San Marino, onde existe a loja física da Alida Store pra comprar um Minchiate Fiorentine, um dos tarôs mais cobiçados pela minha pessoa. Dias se passaram e eu pensei em como usaria o baralho quando o tivesse mesmo em mãos, levando em conta que são 97 arcanos.

Ontem, passeando pela feira de antiguidades no centro histórico, parei pra ver os livros velhos numa bancada. Claro que o primeiro título que me veio à cabeça foi o procuradíssiimo I Trionfi de Petrarca, um documento precioso pra quem estuda o tarô. Me assustei quando vi uma caixa dourada do Visconti Sforza. Uma edição bonita e bem manuseada, do jeito que o meu signo gosta. Mas fiquei arrepiado quando vi uma outra ao lado, toda vermelha. Sim, caros. Era um Minchiate! Quase soltei um "cazzo!" em voz alta, mas me contive. Peguei e pedi pra me deixar ver as cartas. Todas inteiras, maço completo.



"Quanto viene? 12?" - perguntei, cuidadoso, por não entender o preço na etiqueta.
"No, 10 euro!" disse o vendedor, um verdadeiro sózia de Salvador Dalí.

Fiquei mais eufórico ainda! Não, não foi nada surreal, foi um momento de conquista. Anos e anos de procura que acabaram ali, em três minutos de contagem das lâminas, de pagamento e de 'Grazie a te'. Continuei passeando em busca da famigerada criação de Petrarca, tomando o melhor sorvete do planeta e muito grato pela surpresa que a Itália me fez. A vida é bela. Mais ainda com esses pequenos detalhes.

Abbraccio,

Leo

18 de fevereiro de 2010

CARTAS DE VENEZA




Veneza é a minha favorita, toda de Copas e de Ouros.

Depois de uma semana em Roma, acabei indo conferir o famoso Carnevale: SENSATION, tema deste ano, foi realmente sensacional. Baseado nos 6 sentidos humanos, os festejos foram espalhados em alguns regiões: San Polo - VISTA . San Marco - MENTE . Castello - TATTO (tato) . Dorsoduro - UDITO (audição) . Santa Croce - OLFATTO (olfato). Cannaregio - GUSTO (paladar). Mas os encontros mais badalados aconteciam na memorável Piazza di San Marco. Shows, insetos gigantes no meio do povo e o momento do beijo no dia 14, o Dia dos Namorados aqui na Itália, em louvor a San Valentino.



Lá também encontrei as colombinas, o cortejo de turistas vestidos de Commedia dell´Arte e também as cartas de tarô, sejam em máscaras ou em placas, que sempre me seguem. O leão alado que me espreita é o mesmo do arcano XX.






Uma festança na cidade mais charmosa do mundo.
Um baralho despetalado sobre o Adriático.