29 de março de 2012

O LOUCO


UM ESTUDO ICONOGRÁFICO DE ANDREA VITALI


Il Folle | I Tarocchi di Ercole I d'Este, Ferrara, séc. XV.

A loucura, de acordo com a concepção comum, é o “agir sem razão”. Cesare Ripa, famoso iconógrafo perugino, assim define a “Pazzia” na Iconologia de 1603, sua mais importante obra: "Não é nada além de louco aquele que, segundo o nosso modo de falar, faz as coisas sem nenhum decoro e fora do uso comum dos homens por privações de discurso sem razão verossímil ou estímulo religioso". No Evangelho, o homem que não crê é considerado louco, e assim, várias figuras de loucos acabam aparecendo nas bíblias dos séculos XV e XVI com o intuito de ilustrarem o Salmo 52 "O tolo diz em seu coração: não existe Deus!".



Gravura antiga do Louco



(1) A figura do Louco. Xilogravura da Biblia Sacra Vulgatae Editionis Sixti Quinti Pont. Max. (Veneza, Damianum Zenarum, 1603).





Foi encontrada em uma bíblia do século XVI a mesma representação do louco que se encontra no Minchiate de Firenze (figura 1): um homem vestido com trapos, com penas nos cabelos e um cavalo de pau; tem em uma mão um giro e em torno dele aparecem crianças (figura 2). Ripa fornece uma idêntica descrição: "Um homem de idade viril e de vestes longas estará rindo e cavalgando sobre um pau, tendo na mão direita um gracioso instrumento giratório feito de papel e rodeado por crianças”. (figura 2b)



Il Folle no Minchiate de Firenza O louco na obra iconográfica de Cesare



(2) "Il Folle" no Minchiate de Florença (sec. XIV) e (2b) na obra iconográfica de Cesare Ripa (1560-1622)



O riso do Louco que se encontra no baralho de Carlos VI e no de Ercole I d'Este é, ainda de acordo com Ripa, "facilmente indício de loucura, segundo o dito de Salomão; mas se vê que os homens considerados sábios pouco riem e Cristo Nosso Senhor que foi a verdadeira sabedoria e sapiência, não ri jamais". Uma gravura anônima de 1500 mostra um louco que ri diante de um anjo que fecha os olhos com as mãos para não ver tanta vilania (figura 3).



Na lâmina do Visconti-Sforza, o louco traz as penas sobre a cabeça e carrega um bastão sobre o ombro (figura 4). Uma figura similar foi pintada por Giotto na Capella degli Scrovegni na cidade de Padova, como uma figuração da Stoltitia (Tolice) (figura 5). Nesta gravura, o louco tem entre os lábios um objeto que praticamente o impede de falar. O conceito de loucura nesta alegoria vem ampliado pela presença das plumas sobre a cabeça do personagem. É prudente considerar que asas, plumas e penas representavam, para os antigos, os símbolos da velocidade.



Louco - gravura de 1500 O Louco no Tarô Visconti Sforza Pintura Giotto



(3) Gravura anônima de 1500, (4) o Louco no Tarô Visconti Sforza e (5) a "Estultícia" de Giotto



Vincenzo Cartari (1531-1569), famoso mitógrafo italiano, em sua obra Imagini de gli Dei de gl'Antichi (1647) trata repetidas vezes dos atributos de Apolo-Sol. Entre estes as asas e as plumas também significam a velocidade da inteligência de Apollo e do percurso do Sol. A propósito da presença de plumas sobre a testa de Mercúrio, o autor se explica desta forma: "Foram dadas as penas a Mercúrio porque no falar, de quem era o Deus, as palavras voam pelos ares como se tivessem asas. Homero sempre chama pelas palavras velozes, aladas e que portam penas". As penas presentes sobre a cabeça do louco representam portanto, o que falta a ele próprio, que é a velocidade da inteligência e do intelecto e também das palavras adequadas. De fato o lacre na boca do tolo, como concebeu Giotto, assume essa função, pois se não o tivesse, diria apenas tolices, como descrito na passagem bíblica "O tolo é arruinado pela própria língua. As primeiras palavras de sua boca são besteiras e o fim do seu discurso é loucura" (Eclesiastes 10:12, 13).



No tarô de Ercole I d'Este, o Louco aparece praticamente nu. Devido a isso, Ripa escreve que “a Tolice se pinta nua porque o louco releva os seus defeitos a todos, sem vergonha alguma". No dito tarô de Carlos VI, o Louco porta em sua cabeça um gorro com duas grandes orelhas de burro que por sua vez referenciam sua natureza bestial e veste uma modelo de cueca incrivelmente moderno (figura 6). A imagem é bastante similar a uma de outro Louco estampado em um documento bolonhês da segunda metade do século XV (figura 7) que traz só o bastão, mas de modo que pareça perfurar sua mão (relação alegórica, portanto, às chagas de Cristo).



O Louco no Tarô Carlos VI (Gringonneur) Louco - gravura do sec. XV O Louco "Misero" no tarô de Mantegna



(6) o Louco no Tarô Carlos VI, (7) em uma gravura do séc. e (8) no Tarô de Mantegna



Uma variação iconográfica sobre a representação do Louco se encontra também no dito tarô de Mantegna, onde a figura de um miserável acaba sendo agredida por um cão na panturrilha (figura 8). Esta tipologia figurativa permanecerá estável em todas as produções seguintes do tarô. Acima do bastão apoiado sobre o ombro aparecerá uma espécie de trouxa. A presença de um cão próximo ao miserável viajante é típica na arte figurativa medieval, não se distanciando muito da realidade objetiva, quando esse animal ladrava e avançava sobre os vagabundos que se aproximavam das casas para pedirem caridade. Um famoso exemplo se encontra na representação do Filho Pródigo (figura 9) e do Caminho da Vida no famoso tríptico de Hieronymus Bosch. Interessante notar uma figura do século XV de Israel van Mecknem (fugura 10). O simbolismo diabólico relacionado aos instrumentos de sopro - flauta e gaita de fole, em oposição aos "celestes" instrumentos de corda - confirma o caráter negativo da gravura. Por outro lado, a presença do cão aproxima a natureza do bobo à do miserável, criando uma ponte entre as duas variantes iconográficas.



O Peregrino de Bosch O Louco numa gravura de



(9) "O Filho Pródigo" de Hieronymus Bosch e (10) gravura Israel van Mecknem (séc. XV)



Neste ponto se considera um outro aspecto da loucura, aquele ligado à visão místico-sagrada. A Epístola aos Coríntios teve no Renascimento uma grande importância. Alguns de seus passos refletem a relação existente entre a Loucura e o Divino: "A palavra da Cruz para aqueles que se perdem é uma loucura" (I, 1, 18); "Não se enganem: se alguém entre vocês acredita ser sábio pela sabedoria deste século, torna-se tolo por ser sábio. Pois que a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus" (I, 3, 18-19). Somente a renúncia de si e dos próprios bens materiais poderia, segundo o pensamento cristão, conduzir o homem a Deus. O louco, por essa razão, era às vezes considerado um inspirado, portanto, prostrado a um passo da divindade.



Sobre essa divindade do louco em relação ao tarô, é esclarecedor um soneto anônimo do século XVI descoberto na Biblioteca Estense, em Módena. Para conquistar o coração de uma dama da corte, o autor anônimo afirma que é necessário extrair uma carta do maço apenas: a do Louco, “aquele da cabeça divina”. Por esse motivo a mais antiga lista de tarôs conhecida, o Sermones de ludo cum aliis, acomoda "El matto" junto a "El mondo", isto é, a Deus Pai.



O pensamento escolástico, que desejava valorizar a verdade da fé por meio da razão, acabou incluindo à categoria dos loucos, como já evidenciado, todos os que não acreditavam em Deus. E no tarô a presença do Louco conquista um significado ainda mais profundo: enquanto possuidor da razão, mas não crente, ele deveria se tornar, através dos ensinamentos contidos na Escada Mística (veja), o "Louco de Deus", como se tornou Francesco, o santo popular da cidade de Assisi, que foi chamado: o Santo Louco de Deus. O louco, sem numeração nos maços históricos, transita entre o profano e o sagrado, capaz de coabitar a miséria e também de gozar a transcendência.


Tradução do italiano por Leonardo Chioda e publicado originalmente no Clube do Tarô.

Andrea Vitali | LE TAROT Associazione Culturale

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