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26 de julho de 2015

PRUDÊNCIA



'Prudentia', observa Cícero, vem de 'providere', que significa tanto 'prever' como 'prover'. Virtude da duração, do futuro incerto, do momento favorável (o 'kairós' dos gregos), virtude de paciência e de antecipação. Não se pode viver no instante. Não se pode chegar sempre ao prazer pelo caminho mais curto. O real impõe sua lei, seus obstáculos, seus desvios. 

A prudência é a arte de levar tudo isso em conta, é o desejo lúcido e razoável. Prudência é o que separa a razão do impulso, o herói do desmiolado. Ela determina o que é necessário escolher e o que é necessário evitar. Assim, no homem, a prudência faz as vezes do que é, nos animais, o instinto — e, dizia Cícero, do que é, nos deuses, a providência.


André Comte-Sponville
Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, 1999


The Tarot of PragueBaba Studio, 2004



1 de dezembro de 2013

OSSOS DE AÇÚCAR



Em uma de minhas viagens ao México, conheci Leonora Carrington, poeta e pintora surrealista que durante a guerra civil espanhola viveu uma história de amor com Max Ernst. Quando o prenderam, Leonora sofreu um ataque de loucura, com todo o horror que isso significa, com todas as portas que esse mal abre na mente racional. Convidando-me a comer um crânio de açúcar com meu nome gravado na testa, me disse: "O amor transforma a morte em doçura. O esqueleto do Arcano XIII tem os ossos de açúcar". Ao me dar conta de que Leonora utilizava em suas obras os símbolos do Tarô, pedi a ela que me iniciasse. Me respondeu: "Tome estas 22 cartas. Observe-as uma por uma e em seguida me diga o que significa para você o que vê". Dominando a timidez, obedeci. Ela anotava rapidamente tudo o que lhe dizia. Ao término da descrição d'O Mundo, eu estava empapado em suor. A pintora, com um misterioso sorriso, sussurrou: "O que acaba de me ditar é o "segredo". Cada arcano, sendo um espelho e não uma verdade em si mesma, se converte no que se vê nele. O Tarô é um camaleão". Logo em seguida me presenteou com o jogo criado pelo ocultista Arthur Edward Waite, com desenhos no estilo mil novecentos, que logo estaria na moda entre os hippies. Pensava que Leonora, a que eu vi como uma sacerdotisa, me havia outorgado a chave do luminoso tesouro que estava no centro do meu escuro interior, sem me dar conta de que esses arcanos atuavam como excitantes do intelecto.



Alejandro Jodorowsky

La Via del Tarot | Sudamericana, 2005

22 de fevereiro de 2013

DE QUE SERVEM AS TORRES?


Neil Stavely
www.thehorseandhare.blogspot.com



A torre caía sobre mim. Ou observava-me cegamente. Gosto de toda a espécie de torres. São incompreensíveis. Foram construídas por pura bravata, um lirismo arrebatado e improfícuo. Debaixo delas funciona um motor que nunca pára. De que servem as torres? Não pensem que as torres desaparecem assim, que nos livramos delas. Inquietam-nos. Caem-nos sobre a cabeça ou contemplam-nos, imóveis, implacáveis. E imaginava eu que mal reparara nela. É assim: estamos diante das coisas; não as vemos. Só mais tarde, absurdamente, sabemos que apenas fizemos isso: vê-las e possuí-las. E ser apanhado por elas.



Herberto Helder, Escadas e Metafísica.
OS PASSOS EM VOLTA | Assírio e Alvim, 1985.



16 de outubro de 2012

O ORÁCULO FAZ DO ACASO O CENTRO

Irving Penn | The Tarot Reader . 1944


Qual é a diferença entre um moderno experimento científico físico e um oráculo divinatório? Num experimento físico, o acaso é eliminado, é empurrado para a fronteira, o mais longe possível, e sobra um resíduo que não pode ser eliminado. No oráculo, adotamos um enfoque diferente, complementar, ou seja, o acaso é colocado no centro; apanhamos uma moeda, jogamo-la ao ar e a probabilidade de que caia de coroa para cima é a fonte de informação. Assim, num caso, a fonte de informação é constituída pelo acaso e, no outro, ele é o fator de perturbação que temos de eliminar. Eles são absolutamente o que, em moderna linguagem científica, chamaríamos de mutuamente complementares. Os experimentos eliminam o acaso, o oráculo faz do acaso o centro; o experimento baseia-se na repetição, o oráculo está baseado no ato único.


Marie-Louise Von Franz | Adivinhação e Sincronicidade.
Editora Cultrix, 1987.

8 de junho de 2012

ARCANO CLARICE
























SEGUIR A FORÇA MAIOR

É determinismo, sim. Mas seguindo o próprio determinismo é que se é livre. Prisão seria seguir um destino que não fosse o próprio. Há uma grande liberdade em se ter um destino. 
Este é o nosso livre-arbítrio.




LEIA TAMBÉM UM JOGO DE CLARICE COM O TARÔ.


Imagem: Colagem virtual a partir de imagem do Arquivo Lêdo Ivo/ Instituto Moreira Salles.
Texto: A DESCOBERTA DO MUNDO. Editora Rocco, 1984.

25 de maio de 2012




‎'O fundamental frente ao Tarô - convém dizê-lo - é uma atitude de disponibilidade, tão despojada de superstição como de ceticismo. Diversos são os caminhos de aproximação, diversos são os interesses, as disposições e até o entusiasmo com que cada um se aproximará deste livro mudo. Uma coisa só é certa: para fazê-lo falar, é preciso respeitá-lo como a um sistema sintético de pensamento, cuja validade poderá interessar mais ou menos, mas que não pode ser dispensada.'


Alberto Cousté | TARÔ ou A Máquina de Imaginar.
Editora Ground, 1989.

10 de setembro de 2011

LEMOS MAL O MUNDO




Lemos mal o mundo
e logo dizemos que ele nos engana.

Quantas barricadas o pensamento
do homem ergue contra si próprio!

Se lanço minha própria sombra no caminho
é porque há uma lâmpada em mim
que ainda não se acendeu.




Rabindranath Tagore
.

8 de setembro de 2011

VIRTUDE XIV



A temperança é essa moderação pela qual permanecemos senhores de nossos prazeres, em vez de seus escravos. É o desfrutar livre, e que, por isso, desfruta melhor ainda, pois desfruta também sua própria liberdade. Que prazer é fumar, quando podemos prescindir de fumar! Beber, quando não somos prisioneiros do álcool! Fazer amor, quando não somos prisioneiros do desejo! Prazeres mais puros, porque mais livres. Mais alegres, porque mais bem controlados. Mais serenos, porque menos dependentes. É fácil? Claro que não. É possível? Nem sempre, sei do que estou falando, nem para qualquer um.É nisso que a temperança é uma virtude, isto é, uma excelência: ela é aquela cumeada, dizia Aristóteles, entre os dois abismos opostos da intemperança e da insensibilidade, entre a tristeza do desregrado e a do incapaz de gozar, entre o fastio do glutão e o do anoréxico.



A temperança pertence, pois, à arte de desfrutar; é um trabalho do desejo sobre si mesmo, do vivo sobre si mesmo. Ela não visa superar nossos limites, mas respeitá-los. Ela é uma regulação voluntária da pulsão de vida, uma afirmação sadia de nossos poder de existir, em especial do poder de nossa alma sobre os impulsos irracionais de nossos afetos ou de nossos apetites.


A temperança não é um sentimento, é um poder,
isto é, uma virtude.

-


André Comte-Sponville | Petit Traité des Grandes Vertus.
_

15 de outubro de 2010

CEM ARCANOS DE GARCÍA MÁRQUEZ


Capa da 27ª edição, Editora Record.


"─ Caralho! – gritou Úrsula. Amaranta, que começava a pôr a roupa no baú, pensou que ela tinha sido picada por um escorpião. ─ Onde está? – perguntou alarmada. ─ O quê? ─ O animal! – esclareceu Amaranta. Úrsula pôs o dedo no coração. ...─ Aqui – disse."

Nessa onda hispano-política que vem tomando conta de mim, percebo que ando cada vez mais afinado em algumas leituras — não, não só para as de Tarô. Uma inquebrável sintonia, uma atenção autêntica e um sentimento de irmandade com os autores que vão chegando. Me lembro bem do dia em que descobri a vigésima sétima edição do romance CEM ANOS DE SOLIDÃO, do colombiano Gabriel García Márquez.


García Márquez, rei absoluto do Realismo Mágico latino.

Havia um exemplar todo empoeirado na prateleira, com preço exorbitante em algum sebo da Sé. Era caro, mesmo pra um sucesso mundial. Mas relevante pra mim porque a capa trazia dois arcanos marselheses e uma mão cravejada de símbolos esotéricos. Não julgo livro pela capa, mas quando ela chama a sua atenção, pode crer, algo desperta sua atenção para a leitura. Pois bem, anos se passaram. Passeando pela Estante Virtual, o paraíso dos ratos de sebo e consumidores compulsórios de livros [como quem vos escreve sempre aqui], encontrei a mesma edição em ótimo estado de conservação e por um preço que me fez sorrir de tão baixo. Chegou a hora.


Carybé, que dá ainda mais vida aos Cem Anos.

Quando recebi o meu exemplar, que surpresa. As ilustrações não eram meras cópias da Roda e do Diabo. Eram desenhos de Carybé, artista plástico argentino radicado na Bahia, também ilustrador de alguns romances de Jorge Amado e muito amigo do excelente fotógrafo Pierre Verger. Os três que desenharam, escreveram e retrataram a Bahia da mesma forma que Gabo plantou as sementes do fantástico nos domínios latinos e além.


As gravuras não me deixaram mais em paz quando comecei a leitura. E também começou, confesso assustado, o verdadeiro fascínio por um livro. O imensurável encanto por uma narrativa. Um choque por ler exatamente tudo o que sempre quis ler. E tem sido extremamente gratificante perceber que a hora do romance chegou. Seria meu em algum momento, hoje sei disso. E o prazer de ler um clássico tão discutido, tão falado mesmo entre aqueles que pouco ou nada entendem de literatura, fisgou toda a minha atenção. O seu poder ultrapassa a genialidade narrativa e configura um espelho da política latino-americana. Clássico porque relido no mundo todo, há décadas. Relido porque necessário.



Contracapa.

Grandes surpresas a cada página, a cada associação que faço entre o baralho e os personagens. Melquíades, o cigano e bruxo de Macondo é nitidamente O Mago, arrastando seus lingotes metálicos por entre as ruas para descobrir tesouros enterrados na terra. Envelhece rapidamente, morre e reaparece, confirmando a imponência literária de García Márquez na descrição dessas passagens e na magia que corre nas veias cotidianas da cidade e da numerosa família Buendía, protagonista da saga.


Melquíades, O MAGO.
Conhece aquele papo de que o livro certo aparece na hora certa? Já parou pra pensar que com o tarô é a mesma coisa? Um arcano, por mais indesejado, não é escolhido à toa do leque aberto.

E recomendar um livro pela capa? Bom, nesse caso sou suspeitíssimo pra falar.
Ainda mais agora, né? Fica a dica. Mas se você não se sentir à vontade com a ideia, respeite isso.
Tudo tem a sua hora. Se você leu e não gostou, deixo o convite para uma releitura mais atenta, do jeito que você lê o Tarô.


Bom, paro por aqui. E continuo em Macondo.
Boas leituras.


28 de dezembro de 2009

PÍLULAS DA BEM-AVENTURANÇA

ou A Saga do Herói no Tarô


O herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo.




Há dois tipos de proeza do/para o herói. Uma é a proeza física, em que ele pratica um ato de coragem, durante a batalha, ou salva uma vida. O outro tipo é a proeza espiritual, na qual o herói aprende a lidar com o nível superior da vida espiritual e retorna com uma mensagem. O herói evolui à medida que a cultura evolui. É o feito típico do herói - partida, realização, retorno.



Na Idade Média, uma imagem predileta, que ocorre em muitos, muitos contextos, é a da roda da fortuna. Existe o eixo da roda e existe a borda da roda. Por exemplo, se você estiver preso à borda da roda da fortuna, você estará ou acima, no caminho descendente, ou abaixo, no caminho ascendente. Mas se estiver no eixo, você estará no mesmo lugar o tempo todo, no centro. Este é o sentido do voto de casamento - eu a aceito na saúde ou nada doença, na riqueza ou na pobreza: no caminho ascendente ou no descendente. Se eu a tomo como o meu centro, minha esposa é a minha bem-aventurança, não a riqueza que possa trazer-me, não o prestígio social, mas ela, em si. Isso é que é perseguir a bem-aventurança. Estamos vivendo, o tempo todo, experiências que podem, ocasionalmente, conduzir a isso, uma breve intuição de onde está nossa bem-aventurança. Agarre-a. Ninguém pode dizer-lhe o que será. Você precisa aprender a reconhecer a sua própria profundidade.



Nossa vida desperta o nosso caráter. Você descobre mais a respeito de você mesmo à medida que vai em frente. Por isso é bom estar apto a se colocar em situações que despertem o mais elevado e não o mais baixo da sua natureza. Chamar alguém de herói ou monstro depende de onde se localiza o foco da sua consciência.


Joseph Campbell
O PODER DO MITO

1 de dezembro de 2009

PÉROLA DA PRUDÊNCIA


REI DE ESPADAS
Paulina Tarot


"Esteja sempre ao lado da razão e com tal firmeza de propósito que nem a paixão comum, nem a tirania o desviem dela. Poucos cultivam a integridade, muitos a louvam, mas poucos a visitam. Alguns a seguem até que a situação se torne perigosa. Em perigo, os falsos a renegam e políticos a simulam. A razão não teme contrariar a amizade, o poder e mesmo o seu próprio bem, e é nessa hora que é repudiada. Os astutos elaboram sofismas sutis e falam de louváveis motivos superiores ou de razões de Estado. Mas o homem realmente leal considera a dissimulação uma espécie de traição e preza mais ser firme do que ser sagaz. E se encontra sempre ao lado da verdade. Se diverge dos outros, não é devido à sua inconstância, mas porque os outros abandonaram a verdade."

Baltasar Gracián
A ARTE DA PRUDÊNCIA

20 de setembro de 2009

O PENSAMENTO TAROLÓGICO de Alejandro Jodorowsky


Jodorowsky com as cartas de Marilyn Manson na mesa.


Meus longos anos de contato com o tarô me ensinaram novas formas de captar o mundo e o outro, permitindo que a intuição dance com a razão, amalgamando-se no que é chamado de “Pensamento Tarológico”. Os arcanos têm múltiplos significados que vão do particular ao geral, do evidente ao incomum. É necessário conceber cada arcano como um conjunto de significados. Estes significados adquirem maior ou menor importância de acordo com o sistema cultural de quem as interpreta.



Na realidade, cada ser humano é um arcano. Por mais que vivamos junto a alguém durante toda a vida, não podemos afirmar que o conhecemos muito bem ou por inteiro.



Estamos habituados aos seus pensamentos, sentimentos, desejos, gestos e atividades rotineiras, mas basta qualquer acontecimento extraordinário (uma enfermidade, uma catástrofe, um fracasso, um êxito) para que vejamos nesta pessoa os aspectos inabituais que nos surpreendem de forma positiva ou dolorosa. Parte da realidade é o que pensamos que é a realidade. Parte da personalidade do outro é o que projetamos nele. Os defeitos ou qualidades que vemos nele são também nossos. Estes inesperados comportamentos com que o mundo e o outro nos surpreendem causam reações que dependem totalmente do nosso nível de consciência. Num nível de consciência pouco desenvolvido, toda mudança nos assusta, nos fazem desconfiar, fugir, paralisar, enraivecer ou mesmo atacar. Uma consciência desenvolvida aceita a mudança contínua e avança confiante, sem metas, gozando da existência presente, construindo passo-a-passo a ponte que atravessa o abismo. O primeiro obstáculo que tive de vencer para oferecer leituras de tarô que fossem legíveis foram as antipatias e as simpatias. Cada habitante do nosso mundo representa um ponto de vista distinto, novo, que não existia antes de seu nascimento. Algo original, único. Quando morre alguém que amamos, sentimos que o universo inteiro se esvazia. Seja quem for o consulente, ele merece que o respeitemos como uma obra divina que nunca mais voltará a se repetir, com a possibilidade de deixar no mundo a sua marca, a semente de um bem desconhecido.



Não existe tarólogo impessoal. Todo tarólogo está marcado por uma época, um território, um idioma, uma família, uma sociedade, uma cultura.



Assim como na literatura o romance deixou de ser narrado por um escritor-testemunha – considerado um deus, que deixa acontecer sem intervir e nem ser afetado – para chegar a ser contado por um personagem intimamente ligado aos acontecimentos, um ator a mais na trama. Na leitura do tarô, tive de dar o mesmo passo: de nenhuma maneira suportei a idéia de me colocar na posição de vidente que conhece o passado, o presente e o futuro do consulente, observando-o de uma altura mágica, impessoal, emprestando minha voz a entidades de outro mundo. Sendo os arcanos telas de projeção, era necessário que eu desse conta de que tudo o que via nas cartas estava impregnado da minha personalidade. Não podendo me livrar de mim mesmo, perguntei: “quem sou eu quando leio o tarô? Meu pensamento é masculino? É latino-americano? É europeu? É adolescente? É maduro? Minha moral é judaico-cristã? Sou crente, ateu, comunista, servidor do regime estabelecido? Dou-me conta das características da minha época?”



Foto publicada no livro "Castelli di Carte", pela editora italiana Feltrinelli.


Para chegar a uma leitura útil, me dei conta de que, não podendo desprender-me da minha personalidade, teria de “trabalhá-la”, lapidá-la até chegar à essência. Prometi que não iria ceder aos modismos e não cair nas ciladas de nenhuma tradição e de nenhum folclore. Observei com atenção minha visão do mundo e, com todas as minhas forças, tratei de mudar minha mente masculina aceitando a feminina para então fundi-las até chegar ao pensamento andrógino. Nasci no Chile, me formei no México e na França e, interiormente, deixei de ter nacionalidade, chegando a me sentir cidadão do cosmos. Isso me ajudou a perceber os meus limites enquanto ser humano. Minha consciência não era mais prisioneira de um corpo mineral, vegetal ou animal; era a essência do universo inteiro, o qual permitiu me colocar no lugar não só das outras pessoas, mas também dos objetos. O que sente meu gato, esta árvore, o relógio que trago no pulso, o sol, os transeuntes por onde ando, meus órgãos, vísceras etc.?

Neste trabalho de desprendimento e refinamento, perdi não só a nacionalidade mas também a idade, o nome, os rótulos de “escritor, cineasta, terapeuta, místico” e tantos outros. Deixei de me definir: nem gordo, nem magro; nem bom, nem mal; nem generoso, nem egoísta; nem bom, nem mau pai; nem isto, nem aquilo. Também deixei de pretender realizar metas ideais: nem campeão, nem herói; nem gênio, nem santo. Tratei de ser, com todas as minhas forças, o que eu sou. Deixei de me ater apenas a um idioma e desenvolvi um amor e um respeito por todas as línguas, ao mesmo tempo em que me dei conta de que as palavras que não chegam à poesia se convertem em problemas. Acredito que a raiz de toda doença psicossomática é um conjunto de palavras ordenadas em forma de proibição. Impor uma visão é proibir outras.

O universo não tem limites e funciona com um conjunto de leis que são diferentes, às vezes contraditórias, em cada distinta dimensão. Quanto mais expandia meus limites, mais via os limites dos outros. Hoje em dia, quando leio o tarô, quase me converto em “tu” – me sento frente ao consulente como um céu azul que recebe a passagem de uma nuvem. Na verdade, não lemos o tarô para compreender o outro. O dia em que o compreendermos por inteiro, desapareceremos. Creio que, na realidade, o nosso verdadeiro consulente é a morte. Tratamos de entendê-la, pois quando morrermos, ou seja, quando formos ela própria, nos dissolveremos, por fim, na Verdade.



Nenhum tarólogo pode dizer a verdade. Pode apenas dizer sua interpretação da verdade. Quando se lê o tarô, nada se sabe.



Ele lê para compreender, por isso deve continuar lendo mesmo que não compreenda o que vê. Como toda interpretação é fragmentada, a abundância de interpretações faz com que o consulente chegue ao conhecimento de si próprio. Não existem perguntas insignificantes. As perguntas superficiais ou as profundas, as inteligentes ou as simples têm igual importância: posto que as interpretações de cada arcano sejam infinitas, o valor da pergunta dependerá não de sua qualidade, mas da qualidade da resposta do tarólogo. Dei-me conta de que compreender o que eu via era uma ilusão. Para compreender algo, na verdade eu teria de decifrar o que é o universo. Sem considerar o todo, é impossível saber com certeza o que é cada uma de suas partes. O consulente não é um indivíduo isolado. Para saber quem ele é, o tarólogo deveria conhecer sua vida desde o momento em que nasceu, a vida de seus irmãos, pais, tios, avós e, se possível, de seus bisavós. Além disso, saber qual educação recebeu, conhecer os problemas da sociedade em que viveu, os arquétipos e a cultura que formaram sua mente.

Sendo impossível captar a totalidade do outro, é impossível também julgá-lo.
A positividade ou a negatividade de um acontecimento não pertencem ao fato; são apenas interpretações subjetivas. Em respeito ao consulente, é preferível buscar sempre a interpretação positiva. Um tarólogo não deve comparar seu consulente com outras pessoas que se parecem física ou emocionalmente com ele. Comparar, com uma maneira de definir, é uma falta de respeito às diferenças essenciais de cada ser.
O consulente pode não conhecer a si mesmo e na maior parte das vezes ignorar as influências que recebeu de sua árvore genealógica. Se conhece um só idioma, se não viaja a países longínquos, se não estuda outras culturas, se nunca imobilizou seu corpo para meditar, se entre fazer e não fazer prefere não fazer, refugiando-se pelo medo do fracasso em experiências novas, seu inconsciente se apresenta não como ele é – um aliado –, mas como um mistério inquietante, um inimigo. Nunca saberá qual é a base real do que pensa, sente, deseja ou faz. E durante a leitura que suas perguntas, por mais superficiais que possam parecer, ocultarão processos psicológicos profundos. “Devo ir ao salão de beleza cortar o cabelo ou mudar de penteado?” Pergunta muito simples, aparentemente frívola, que sem dúvida pode render uma resposta profunda.

Se fosse apenas o que dizem as palavras, que necessidade teria a pessoa de ser aconselhada pelo tarô? Bastaria discutir com ela uma decisão a respeito. Mas também se poderia saber que com este corte ou troca de penteado, a consulente estaria expressando seu desejo de mudar de vida, abandonar a solidão ou, pelo contrário, terminar uma relação. Poderia também, sob outro aspecto, iniciar novas experiências, buscar reconhecimento, indicando que há insatisfação consigo mesma ou o descobrimento de novos valores que a obrigam a se desvencilhar de uma antiga personalidade.
O tarô nos ensina a respeitar todas as perguntas: cada uma delas significa uma



oportunidade de aprofundar o conhecimento de nós mesmos para vivermos plenamente como uma pedra preciosa nesta jóia que é o tempo presente. A maioria dos consulentes não se sente como algo ou alguém que “é”, mas como algo ou alguém que “será”. Toda generalização é ilusória. Os acontecimentos não são nunca similares. Quando se põe um frente ao outro, como exemplo, aquele que o cita emite uma concepção pessoal.

Para cada indivíduo, o outro é diferente. O outro, sendo parte de um todo infinito, por mais impossível de definir ao ser captado e interpretado por nós, recebe os limites que correspondem ao nosso nível de consciência. Este outro é uma mescla do que ele aparenta e do que lhe conferimos ao convertê-lo em nosso próprio reflexo. As qualidades que vemos nele, assim como seus defeitos, são parte das nossas próprias qualidades e defeitos. Ao julgar, ao medir os demais, ao colocarmos rótulos – bom, mau, belo, feio, egoísta, generoso, inteligente, idiota, etc. – estamos mentindo a nós mesmos.
A realidade não é boa nem má em si; nem bela nem horrível e nenhuma outra qualidade. A unidade divina não pode ter qualidades e nem ser definida por um tarólogo que não a compreende por não poder contê-la. O todo é todas as partes, mas todas as partes não são o todo. Em nenhum momento o tarólogo pode erguer-se em juízo de seu consulente e aceitar como reais e justas as visões que o consulente tem de seus familiares ou seres que invoca na leitura. No mundo, não se pode afirmar “tudo é assim”. O correto é dizer que “quase tudo é assim”. Se noventa e nove por cento é considerado negativo, não se pode excluir a positividade contida em um por cento. Esse um por cento é mais digno de definir a totalidade do que o restante negativo. Essa pequena positividade é capaz de redimir a grande negatividade. Por isso não se deve afirmar que o mundo é violento. Pode-se aceitar que há violência no mundo, demasiada violência, mas não defini-lo por esse fato. O mundo é tão perfeito quanto o cosmo. Igual é o ser humano. Não é conveniente afirmar que se está doente. O corpo humano é um organismo complexo, misterioso, que possui saúde. Estar vivo é estar são, física e mentalmente. Podemos ter enfermidades e atitudes psicóticas, mas por mais graves que sejam, não se convertem em um “doente” ou em um “louco”; não definem nosso ser senão nosso estado presente. O espírito humano, infinito, não suporta rótulos.
O tarólogo, mais que mostrar os muitos defeitos, deve tratar de captar as qualidades do consulente, pois mesmo que sejam poucas, o ajudarão a ser quem ele é de verdade. Não se deve definir o consulente por suas atitudes, mas sim definir as ações que o consulente tem feito. Ele não é “um tolo”, mas “fez tolices”. Não é “um ladrão”, mas “se apoderou de bens alheios”. Se o consulente é definido por suas atitudes, ele acaba sendo separado da realidade.



O valor de um leitura depende do nível de consciência do tarólogo. Se ele for sábio, pode obter valiosas mensagens por mais absurdos que possam ser os arcanos escolhidos pelo consulente.



A consciência do tarólogo confere sabedoria ou necessidade à sua leitura, mas os arcanos em si não são sábios nem tolos: eles não têm qualidades. As qualidades são de quem os interpreta. As leituras, apesar de sua importância, são sempre interpretações pessoais do tarólogo e por isso mesmo não deve obter validade de prova única ou absoluta. Nenhum leitura pode constituir a prova de um fato, por mais assertiva que seja. A exatidão e a precisão, em uma realidade em constante mudança, são dois obstáculos à compreensão. O desejo de perfeição, de exatidão, de precisão e de repetição do conhecido e estabelecido são manifestações de uma mente rígida que teme a mudança, o diferente, o erro, a permanente impermanência do cosmos. Esta atitude puramente irracional se opõe ao pensamento tarológico, que se assemelha ao poético. É como se escutássemos o poeta Edmond Jabés dizer: “Ser é interrogar no labirinto de uma pergunta que não contém nenhuma resposta”.



Depois que um arcano é interpretado de certa forma, é possível modificar, em outro momento, a interpretação. As interpretações não são os arcanos, eles não mudam, mas o tarólogo sim, enquanto ser que se transforma.



Nunca mudar de interpretação é teimosia. Toda a mensagem obtida pela leitura de algumas cartas pode ser contradita por uma segunda leitura dessas mesmas cartas. As mensagens não são extraídas das cartas sem as interpretações que são dadas a elas. Responder “não” a uma afirmação é um erro. Nada pode ser negado em sua totalidade. É melhor dizer “é possível, mas de outro ponto de vista se pode concluir o contrário”. A doença é essencialmente separação, ou seja, crença de se estar separado. A chave mágica que permite tanto ao consulente quanto ao tarólogo organizar positivamente sua passagem pelo mundo é a pergunta “a vida me faz feliz? Essas pessoas, esse país, essa casa, esses móveis, me fazem feliz nesta vida?” Se não me alegram a vida, significa que não me correspondem como companhia, ambiente, território, atividade - o que me convida a não me envolver com eles. Todo conceito tem um valor duplo, composto da palavra enunciada e uma contrária não proferida. Afirmar algo é também afirmar a existência de seu contrário. Por exemplo: feito (em relação a algo bonito), pequeno (em relação a algo grande), defeito (em relação a qualidade), etc. Fora dessa relação, o conceito não tem sentido. Sem se comparar, o consulente não pode saber quem ele é. A personalidade adquirida, não a essencial, se forma baseando-se em comparação.



Foto também publicada no livro "Castelli di Carte", que acompanha um dvd com palestra e entrevista exclusiva.


O tarólogo deve começar sua leitura ciente de que se dirige a alguém que é o que sua família, sua sociedade e sua cultura quiseram que ele fosse, pelo qual acredita ter metas que não são as suas, com obstáculos superficiais e problemas disfarçados de soluções.
O tarô poderá indicar-lhe sua natureza, suas metas, obstáculos e verdadeiras soluções fazendo-o ver a região silenciosa de sua existência. O que não sabe e o que sabe são partes da vida do consulente. O que não fez é tão importante quanto o que fez. O que não pode um dia fazer faz parte do que já está fazendo. O que ele foi e o que não foi, o que é, o que não é e o que será e o que não será constituem por igual o seu mundo.
Alguns consulentes, por medo de perderem aquilo que acreditam ser sua individualidade, não querem ser tratados e nem curados. Em vez de obterem soluções, desejam apenas ser escutados, amparados.
O tarô não cura; ele serve para detectar a chamada “enfermidade”. Cada um dos arcanos pertence ao mesmo tarô. Por isso, duas cartas

observadas juntas, ainda que pareçam ter significados absolutamente diferentes, possuem detalhes em comum. Diante de qualquer conjunto de cartas deve-se buscar entre elas o maior número possível de detalhes em comum.

Todos os seres humanos pertencem a uma espécie em comum e vivem no mesmo território, o planeta Terra. Por isso, duas pessoas juntas, apesar de serem de raça, cultura, posição social e nível de consciência diferentes, possuem características em comum. O tarólogo, abandonando toda a vaidade de sentir-se superior, deve captar essas semelhanças e concentrar sua leitura primeiramente nas experiências eu o unem ao consulente. Nada melhor que um “ex-doente” para curar um enfermo.



O mau tarólogo, que confunde “pensar” com “crer”, faz interpretações para então buscar nos arcanos os símbolos que podem confirmar suas conclusões.



A verdade para ele é a priori, seguida a posteriori pela busca da verdade. Toda conclusão é provisória e se amplia somente a um momento da vida do consulente, porque foi extraída de interpretações que, por serem pontos de vista do tarólogo, são limitadas. Dar conselhos ao consulente como “você deve fazer isso; não deve fazer aquilo”, é um abuso de poder. O tarólogo deve oferecer possibilidades de ação, deixando que o consulente decida ou escolha por si próprio. Tampouco o tarólogo deve ameaçar (“se não fizer isso, vai acontecer aquilo”), pois o que é feito de forma obrigada, mesmo que pareça positivo, atua como uma maldição. Se o leitor é antes de mais nada “eu”, sendo incapaz de converter-se em um espelho que reflita o outro, na verdade está usando o consulente para curar a si mesmo. Em vez de ver, se vê. No lugar de compreender, impõe sua visão de mundo. Ao invés de despertar os valores do consulente, o submete a um encantamento onde o tarólogo é um adulto e ele uma criança.

O tarólogo não é a porta, e sim a campainha; não é o caminho, mas sim o pano que limpa o barro dos sapatos, não é a luz, e sim o interruptor. O tarólogo não deve fazer promessas e nem bajulações (“Você tem uma alma nobre”, “é uma boa pessoa”, “tudo sairá bem”, “Deus lhe presenteará”, etc.), palavras vazias e inúteis que impedem a tomada de consciência. Para curar-se, o consulente não deve fugir do sofrimento e sim vê-lo de frente, assumi-lo para logo mais libertar-se dele. Um sofrimento conhecido é mais útil que mil elogios.Quando meu filho Teo morreu num repentino acidente aos 24 anos, uma dor indescritível desintegrou meu espírito. Eu assisti à sua cremação e, quando não acreditava ser possível encontrar consolo, vi meu filho Brontis aproximar-se do cadáver e colocar em sua mão um tarô de Marselha. Teo foi cremado e eu recebi em uma urna as cinzas desses seres sagrados. Para sempre, até o final da minha existência, os arcanos abraçados ao meu filho ocuparão um trono em minha memória. Aquilo em que verdadeiramente acreditamos e o que verdadeiramente amamos são a mesma coisa. A imensa dor da perda de um ente querido nos destroça a imagem que temos de nós mesmos. Se tivermos a coragem de nos reconstruir, seremos mais fortes e cada vez mais compreensivos com a dor dos outros.



Traduzido do italiano a partir da quinta edição do livro La Via dei Tarocchi, de Alejandro Jodorowsky e Marianne Costa, publicado em fevereiro de 2008 pela Giangiacomo Feltrinelli Editore de Milão. Publicado originalmente no Clube do Tarô: www.clubedotaro.com.br .

14 de fevereiro de 2009

CONTRARIANDO HAJO BANZHAF


Three of Cups - Pamela Colman Smith
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O mais conhecido tarólogo da Alemanha, autor de vários livros publicados no mundo todo, é um dos preferidos que consta na minha estante, justamente pela obra O TARÔ E A VIAGEM DO HERÓI, lançado por aqui pela Editora Pensamento. Na introdução do livro, Banzhaf faz um panorama da origem, da estrutura e da simbologia das cartas, abordando o famoso tarô de Marselha e o Rider Waite, desenhado por Pamela Colman Smith - esta última digna de atenção por enriquecer o universo tarológico ao ilustrar os Arcanos Menores.
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Mas relendo esse capítulo, estranhei pelo seguinte comentário sobre o 3 de Copas, que passou despercebido na primeira leitura: "Por mais bem-vindo que seja esse enriquecimento, ele não nos deve impedir de ver a grande diferença que existe entre as imagens que surgiram no curso dos séculos do inconsciente coletivo da humanidade - como podemos supor pelos Arcanos Maiores - e as ilustrações que foram imaginadas por uma pessoa, ainda que ela fosse uma pessoa tão genial. Por certo, uma imagem imaginada é útil para se deduzir um significado, porém ela nunca alcança o conteúdo e a profundidade simbólica de uma imagem arquetípica. Por esse motivo, é pouco produtivo ficar analisando os detalhes das imagens dos Arcanos Menores. Elas simplesmente ilustram um tema. Assim, a carta Três de Taças nos mostra a dança da colheita, como se pode reconhecer pelas frutas caídas aos pés dos dançarinos. Quem entende esse enunciado nas ilustrações sabe o que a carta quer dizer: um desenvolvimento teve êxito, houve a colheita, a pessoa é grata e está satisfeita. A carta não revela mais do que isso. Qualquer especulação a respeito do fato de uma das dançarinas calçar sapatos dourados, enquanto os sapatos das outras são azuis, ou que tipo de frutas ou vegetais estão presentes, é algo sem importância, quando não inútil."
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Muito bem, Hajo. Até certo ponto eu concordo com você. Mas dizer que um Arcano Menor desenhado simboliza apenas um significado específico é um tanto limitador, não acha? Certamente o 3 de Copas não significa apenas êxito na colheita e satisfação pela fartura. E no plano afetivo, quando alguns estudiosos afirmam traição iminente, o famoso triângulo amoroso, por exemplo? Existe desenvolvimento favorável nisso? Ou uma conclusão definitiva? Duvido muito.
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Não puxo a sardinha pra brasa da Pamela ou do Waite e de ninguém que utiliza os baralhos inspirados no da dupla revolucionária. O que vale é a leitura da imagem. Limitar uma interpretação por meio de um conceito como esse é um desrespeito à profundidade da figura, independente de quem a concebeu. E é absurdo pensar que a imaginação de uma artista não se utilize de símbolos para compôr seus desenhos. Aliás, não é a imaginação uma ferramente essencial para a decodificação? É sim, desde que não hajam viagens homéricas na maionese, burlando a estrutura da carta em sua essência. Quem disse que imaginar não faz parte do ofício oracular? Quer dizer que nos meus cursos, quando chego na abordagem dos Menores, devo dar apenas duas ou três palavrinhas sobre o significado de cada um deles? E numa tiragem sofisticada, como na casa 8 do Mandala Astrológico, acompanhado da Temperança, por exemplo? O problema estaria em definir até que ponto uma figura é imaginada e onde é o campo arquetípico do inconsciente, então?
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Bom, as Copas respondem por si. A releitura, no seu mais amplo significado, é sempre válida.
E os sapatos podem indicar várias coisas, garanto.
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Leo

28 de janeiro de 2009

O PENSAMENTO TAROLÓGICO DE JODOROWSKY


O iPod, o caderno de desenho, o livro de consultas, o felino e a Via do Tarô que encontrei em Veneza.
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Alejandro Jodorowsky é cineasta, escritor, roteirista de quadrinhos, místico, terapeuta, psicomago e tarólogo. Mesmo louco e polêmico como muitos afirmam, sua obra em relação ao tarô merece destaque e respeito. Longe de suscitar mudanças radicais nas engrenagens da prática da leitura do tarô no mundo – o chileno crê, por exemplo, que nenhuma consulta deve ser cobrada –, destaca-se a restauração do famoso baralho de Marselha como seu ingresso na história contemporânea dos arcanos e sua importância simbólica para o ocidente. Do tarô e dele, propriamente. Enquanto tarólogo, sinto extrema satisfação de traduzir e trazer a público, por meio do Clube do Tarô, a conclusão da bíblia arcana que Jodorowsky criou ao lado da atriz e escritora Marianne Costa. Depois da extensa anatomia das lâminas retrabalhadas com o mestre de cartas Philippe Camoin em 1998, o artista multimídia discorre sobre a importância da relação leitor/consulente e o poder das cartas na vida de ambos. São lições valiosas que, se absorvidas com atenção e sem pré-julgamentos, podem expandir os conceitos de interpretação e visão do mundo através dos 78 portões de sabedorias e caminhos infinitos. Um ganho para o tarô.
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Boa leitura. E boas leituras.
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Leo
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O PENSAMENTO TAROLÓGICO DE ALEJANDRO JODOROWSKY.

Tradução livre a partir da quinta edição do livro La Via dei Tarocchi, de Alejandro Jodorowsky e Marianne Costa, publicado em fevereiro de 2008 pela Giangiacomo Feltrinelli Editore de Milão.

E MAIS um artigo sobre a restauração do Tarô de Marselha.


LEIA AGORA NO Clube do Tarô.

1 de janeiro de 2009

22 de agosto de 2008

13 de junho de 2008

SANTO MESTRE - Osho fala aos seus arcanos (II)



Osho dialoga com o Tarô. Não só com o que leva o seu nome, mas com todos os tipos, de todas as épocas e cores. Hoje, há exatamente um ano e meio da publicação do primeiro artigo, eu apresento mais uma carta ao místico espiritualmente incorreto. Procuro por novas analogias em minha biblioteca mental enquanto tomo o sagrado café da tarde. Aliás, um café-tarot com direito a amigos e arcanos à mesa posta. São várias as semelhanças e as roupagens, algumas totalmente surreais. O discurso do mestre às lâminas prevalece como conchas no oceano. Ouso mudar a ordem das cartas: o Louco acima do Eremita. O penhasco, a escuridão. A montanha, a existência. Assim o jovem mergulha em si, já que “descobrir o seu ser é o começo da vida. Então, cada momento é uma nova descoberta, cada momento traz uma nova alegria.”


O Eremita e O Louco • Osho Zen Tarot

Sua luz ilumina a escuridão. Seu sorriso prenuncia o próximo passo. Não há medo algum. A queda do corpo? Bom, se estou mexendo com o Pendurado, então analisemos por outro prisma: A Nova Visão. Não é exatamente essa a intenção que deve obter o enforcado, crucificado e apostolado arcano 12?




O Pendurado de Marselha e a Nova Visão

Desde o artigo anterior tenho analisado o arcano 5, O Sacerdote. Polêmico, se compararmos a Osho. A briga é feia, dizem os mais desavisados.“Eu não sou um filósofo. Eu não sou tentando criar uma filosofia. Eu não sou um teólogo também. Assim, eu não tenho nenhum sistema de crenças.” Já adianto: não há como considerá-lo Papa se “todas as crenças são venenosas. Um sistema de crenças é um consolo, uma mentira muito doce, confortável e conveniente, pois dá segurança. A verdade só surge quando as crenças forem destruídas.



Mestres em vermelho: Osho e O Papa de Marselha

Bueno, o Louco já está avisado: “A busca pela verdade começa quando você deixa de lado todas as crenças. Se você pode saber, se é possível saber, então porque se contentar em acreditar?” Quanto ao Eremita, “o pico mais alto da consciência é quando você é apenas um ser – sem nada fazer, imóvel, profundamente silencioso, como se não existisse mais. Subitamente toda a existência começa a derramar flores sobre você.”


Imagino uma das confortabilíssimas cadeiras de Osho frente ao Hierofante, cujos súditos voltam suas cabeças na direção do guru: “Vocês acreditam em alguma coisa, mas não sabem nada. Acreditam em teorias.” A santidade ficaria furiosa, creio eu. Os argumentos do Mestre sobre religião, papado e sacerdócio são fortíssimos. Convencem, até. São Francisco de Assis, por vezes “arcanizado” como Louco e Eremita, servirá para apresentar as novas idéias.



São Francisco de Assis, do Tarô dos Santos de Robert Place
O Eremita do Golden Tarot, de Kat Black


Peregrinação. “A vida deve ser uma busca – não um desejo, mas uma procura; não uma ambição para se tornar isso ou aquilo, o presidente de um país ou um primeiro-ministro, mas uma busca para descobrir “quem sou eu?


Eis o diálogo: “você é tão sensível que até mesmo a menor folha de grama passa a ter uma imensa importância para você. Sua sensibilidade lhe deixa claro que a menor folha de grama é tão importante para a existência quanto a maior estrela. Essa folha de grama é única, é insubstituível, ela tem sua própria individualidade.


Grama? O que temos ao pé do caminhante de Marselha?


Todos os diálogos possíveis, começando pela cor dos cajados
O quinto arcano fica entre eles


É clara a mensagem para o Louco de Assis: “Essa sensibilidade criará novas amizades para você – amizade com as árvores, com os pássaros, com os animais, com as montanhas, com os rios, com os oceanos, com as estrelas, pois a vida se torna mais rica na medida em que o amor cresce, em que a amizade cresce.


São Francisco também caminha pela escura floresta ao lado de um gamo, na colagem primorosa de Kat Black. Autêntica comunhão com seus irmãos, os animais. Ele realmente existe, não foge de seu tempo, já que é o seu próprio tempo. Faço dele as palavras de Osho: “Nós pertecemos intrinsecamente à existência. Nós somos partes da existência, somos o seu coração.” É ele o espírito que liga os dois irmãos arcanos, sem deixar o humor de lado, já que é importante em qualquer fase ou relação, indispensável em qualquer jornada, até mesmo à interior. O Eremita marselhês sorri, você vê? Como um anfitrião que aguarda os (s)eus convidados. Uma festa dentro de si. São Francisco sabe que “a risada é a própria essência da religião”, que “a seriedade nunca é religiosa. A seriedade pertence ao ego, é precisamente parte da própria doença”, lembrando de quando se deparou com a lepra. Sermão aos pássaros, que voam livres como ele próprio.


São Francisco de Assis: 
os três arcanos se encontram em nítidas senelhanças na pintura de Giotto

Leva consigo este ensinamento, que “toda brincadeira da existência é tão bonita que a risada é a única resposta possível a ela. Somente a risada pode ser a verdadeira oração, a gratidão”, enquanto o Louco se esgueira pra ouvir esta passagem. Pura identificação. Por falar no arcano zero de Ma Deva Padma, sabemos que ele não tem como voltar atrás – ele já deu o passo inicial, ou final. Sua trajetória, à mente comum é sempre desviar-se do penhasco, ou perguntar o motivo de tal “suicídio”. Mas sua jornada é como o mecanismo de uma piada, de uma consulta às cartas: “a história vai numa direção e, de repente, ela muda de direção!


Nem falei que o Louco ri porque é óbvio. É assim que ele medita, pois “quando você realmente ri, durante aqueles poucos momentos você está num estado profundamente meditativo”. E ele ri de verdade, até o pensamento parar. Ele não, só o pensamento: continua dançando, pois “a dança e o riso são as melhores portas, as mais naturais, as mais facilmente acessíveis.


Sannyasins rindo com o mestre

O Louco ouve: “se você realmente dançar, o pensamento pára. Você dança sem parar, girando, girando... e você se torna um redemoinho – todas as fronteiras, todas as divisões desaparecem. Você nem mesmo sabe onde seu corpo termina e onde a existência começa.” E ele salta. “Você se dissolve na existência e a existência se dissolve em você; há uma superposição de fronteiras” – como a do Eremita, por certo. Deve ser por isso que o velho de Assis nada possui: “se você é uma pessoa meditativa, você dá, você compartilha – você não acumula, você não é mesquinho. Como você pode possuir? Como você pode reclamar que é dono de algo?” Eis a indignação do Pontífice por sempre se encontrar rodeado de luxo e comodidades de suas capelas. Aliás, falando nelas, “não há necessidade de ir à igreja, ao templo ou à mesquita; onde você estiver, seja bem-aventurado, e o templo estará presente” – diz ao arcano sem número. Uma crítica, talvez, às instituições que convertem à base de dinheiro e lavagem cerebral. “O templo real é criado pela bem-aventurança”.


Sobre as técnicas espirituais, Osho é enfático. Louco. Renunciador. “Você precisa se lembrar de que tudo deve ser abandonado para que você permaneça em sua total pureza. Mesmo uma experiência espiritual corrompe; ela é um distúrbio” – e voltamos à lição essencial ao Caminhante. Pura metáfora para a humanidade sedenta por princípios e doutrinas. Meras conchas no oceano de tudo. E ele continuaria tranquilamente acomodado, movimentando sua xícara. Não há discussão que seja burlada pela verdade. Nem prazer maior que a renúncia.



Mais café?

Já trago. Com mais arcanos.


Leo
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IMAGENS
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