Kublai Khan: – Fale-me de outra cidade – insistia.
Marco Polo: – ...O viajante põe-se a caminho e cavalga por três jornadas entre o vento nordeste e o noroeste... – prosseguia Marco, e relatava nomes e costumes e comércios de um grande número de terras. Podia-se dizer que o seu repertório era inexaurível, mas desta vez foi ele quem se rendeu.
Ao amanhecer, disse: - Sire, já falei de todas as cidades que conheço.
– Resta uma que você jamais menciona.
Marco Polo abaixou a cabeça.
– Veneza – disse o Khan.
Marco sorriu.
– E de que outra cidade imagina que eu estou falando?
ITALO CALVINO | As Cidades Invisíveis, 1972.
Minha relação com cidades costuma ser sempre visceral. Alguns amam pessoas ou livros e passam a vida tentando decifrá-los, publicar sobre gente ilustre ou filme e até obter doutorado para falar com toda a propriedade sobre determinado evento ou criatura. Já eu tenho com cidades, mesmo. Sei que é interminável esse trabalho, mas ele se mantém. Como se elas fossem personificações, se é que não são. E Veneza é minha preferida. Quem me conhece bem, bem sabe. Uma cidade que é uma pintura. Mise en abyme absoluto, confunde os olhos e as verdades interiores. Aperta o coração. Mesmo depois de três viagens feitas até lá, não consigo descrever o que senti. E não falo devido à beleza indiscutível e à pompa que o turismo confere ao Vêneto todo, mas pela atmosfera e pela história. Pelo enigma.
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Marco Polo deixa Veneza em 1271. Iluminura do século XIV. |
Um dos meus livros favoritos de Italo Calvino é justamente um dos seus mais famosos: As Cidades Invisíveis. Marco Polo é o veneziano que tece as cidades em frente ao Grande Kublai Khan, imperador de tudo, a fim de ilustrar as maravilhas de seus próprios horizontes. É Veneza a raíz das narrativas de Polo, sempre será. O eterno viajante jamais esquece suas origens. Assim com o tarólogo, que nunca se perde de onde vem. O primeiro baralho é crucial ao desempenho futuro, acredite.
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Aspettando l'Ariuo di Marco Polo | Juarez Machado, pintor brasileiro. |
E por falar nelas, nas origens, Veneza era o link entre a Europa e o Oriente. É Dai Léon, em seu tortuoso Origins of the Tarot (Frog Books, 2009), que afirma ter sido a jóia do Adriático o maior centro italiano de importação de cartas. Graças ao comércio dos mercadores venezianos que as cartas de jogar se tornaram conhecidas nas cortes do Norte da Itália. Veneza foi forçada a se tornar o sultanato mameluco em Alexandria para então poder ser agraciada com os bens do Oriente. Também fez escambo com Istambul. Competição acirrada com Portugal. Portos e portos, negociações. A nobreza, as iguarias. O tempero de Veneza é alquímico. Era o umbigo cravejado de encantamentos do Velho Mundo. Lenda viva, nunca afunda. Poderíamos dizer, a partir das teorias de Léon, que sem Veneza não seríamos nada. Os arcanos teriam tomado outros rumos, talvez. Ou não. Ou sim.
Qual é a sensação de embaralhar uma cidade? Quebras das linhas dos mapas, contornos. Variações de becos e flashes de praças e bairros e vias. Quando se embaralha Veneza, no entanto, difere em tudo.
Vi o Tarocchi di Venezia há alguns anos quando navegava pelos mares do Aeclectic, maior catálogo virtual de baralhos e resenhas, absolutamente confiável. Procrastinei tanto a compra que por fim, logo depois da minha palestra na II Confraria Brasileira de Tarot, decidi acabar com a distância e o recebi das mãos de Priscilla Lhacer, do Amor Próprio, a melhor importadora de baralhos do Brasil. Felicidade por ter Veneza mais perto. Concebido por Davide Tonato, pintor surrealista veronês, o projeto teve a idealização de Giordano Berti, uma das maiores referências italianas em história do Tarô. A partir desse fato [já que sou um ávido devorador do trabalho de Berti], acabei constatando o empenho e a coerência do projeto ao elencar personalidades venezianas em cada uma das setenta e oito molduras. O passado configurando o presente e o futuro. Quer melhor oráculo que a própria História?
Il Matto, o nosso querido Louco que estampa a embalagem consistente que só a Dal Negro faz, é nada menos que um Arlecchino, ícone da Commedia dell'Arte, que por sua vez serve de base para o estudo dos 'arquétipos' cenográficos. Va bene, se fosse só isso seria bonita a associação entre a figura cômica e o Arcano Sem Número. Ponto. Mas o augúrio vai além e se ramifica na paisagem: o Arlecchino se equilibra sobre um barril sobre o mar, bem à frente da ilha de San Servolo, o manicômio de Veneza. A partir daí, a coisa fica séria.


Il Bagatto, ou Mago, é Giordano Bruno. O cenário? Piazza San Marco, o chão feito de memória e poemas. Portia, a juíza d'O Mercador de Veneza, encarna o oitavo Arcano. É Shakespeare eternizado junto à Ponte dos Suspiros. A matemática Elena Cornaro Piscopia rege La Fortuna sob a torre do relógio astrológico, foto obrigatória a qualquer visitante. La Morte surge esvoaçante na igreja de San Rocco lançando seu manto negro – metáfora da peste de 1603.
Galileu Galilei, n'A Estrela, mostra ao doge Leonardo Donato um novo instrumento de observação: o telescópio, em 1609. Carlo Goldoni, que tive o privilégio de estudar durante o curso de Storia del Teatro quando morei na Itália, aparece divinamente homenageado no Sol: Zanetto e Tonino ainda meninos, protagonistas da peça I Due Gemelli Veneziani, fazem alusão aos tarôs clássicos. A iconografia veneziana dialoga com a tradicional. Grande sacada dos compositores do maço.
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O começo da aventura: desbravando o deck. | Instagram @leochioda |
E as personalidades continuam. Pesquisa histórica bastante nítida e sugestão de leituras. Sempre mais leituras. Difícil acreditar em quem lê o Tarô pelas vias da facilidade a qualquer custo. Alguém conhece uma cidade inteira em apenas um dia? Nunca.
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Primeira jornada: julho 2008. |
Ler o Tarô, qualquer Tarô, requer dúvida, coragem e atenção. O poder das narrativas é tão forte como sair em plena solidão pelas vielas de uma cidade. Perder-se pelos becos da interpretação, sugerir atalhos, reconfigurar o mapa interno. O sangue fala mais alto quando você descobre que um dos seus tataravôs era gondoleiro. Daí que meu caso de amor com Veneza é visceral. Penetrar as fondamenta com o ímpeto de desbravador e tornar a cada calle do caminho convencional permitindo um olhar mais generoso. Tarefas de um viajante, não de um mero turista. O viajante lê cidades. E nunca diz, com propriedade inabalável, que as conhece de fato. Afirma que as tem, no entanto. No coração, na imaginação.
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Carta Alta | Maschere Veneziane. Que tal uma com Visconti-Sforza? |
O Tarô é um exercício de raízes.
E mesmo depois de três longas visitas a Veneza e dos sonhos constantes [com os mercados, os cafés, os vidros, os mouros, os barcos, os leões, as caravanas e os espíritos], eu a tenho agora em minhas mãos, como espelhos de exato diâmetro e espessura. Cidade é reflexo. O símbolo máximo do homem. Contém tudo. Todos.
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Marco Polo Voyage | O trajeto até Kublai Khan em selos franceses. |
O Tarô, ele próprio, é uma cidade. Difícil acreditar em quem o lê pelas vias da facilidade a qualquer custo. Alguém conhece uma cidade inteira em apenas um dia? Nunca. Ler o Tarô, qualquer Tarô [que fique claro] sob qualquer sistema, requer dúvida, coragem e atenção. O poder das narrativas é tão forte como sair em plena solidão pelas vielas de uma cidade desconhecida. Perder-se pelos becos da interpretação, sugerir atalhos, reconfigurar o mapa interno exige ousadia. Aventura. Atentar às paisagens dos baralhos favoritos desemboca em novas cidades, já percebeu? Invisíveis, a princípio. Mas íntimas. Mundanas. Humanas em sua extensão e perímetro. Tal qual um coração.
Somos Marco Polo quando abrimos as cartas sobre uma mesa: desbravamos símbolos de nós mesmos aos outros, traduzimos o desconhecido. O Tarô é uma viagem, uma procissão, um carnaval, uma frota, uma companhia de teatro. E nós somos os escritores, os roteiristas, os poetas das circunstâncias. Atores, dramaturgos, pintores. Cabe a nós os registros das Rotas, desde as origens até depois dos destinos.
E Veneza é meu coração. De vidro e água.
Outras cidades surgirão.
Ah, sempre.
L.
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AONDE ENCONTRAR O TARÔ DE VENEZA?