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14 de fevereiro de 2016

CARTAS DE AMOR

CONIUNCTIO 
capa do álbum New Skin for fhe Old Ceremony
Leonard Cohen, 1974




















Uma carta de amor nunca é inocente. Com essa verdade o escritor argentino Alberto Manguel fundamenta um ensaio homônimo, sugerindo encarar a correspondência amorosa como gênero literário nunca dantes navegado. É preciso estipular suas regras, seus labirintos de rosas regadas a tinta esferográfica e, mais que nunca, suas revelações — de quem lê e de quem é lido. Porque cartas de amor descortinam identidades ao longo do mundo. Semblantes floreados de loucura, de desejo, de tristeza e de pertencimento. Sim. Sendo amantes, gozamos todos da faculdade de nos apaixonarmos. Homo amans por natureza. 

The Love Letter
Carl Spitzweg

Cartas de amor. Por toda a história da leitura há cartas de amor. Entre os primeiros vestígios de escrita estão relatórios contábeis e, claro, correspondências amorosas. Não à toa. De procedimentos mágicos a fórmulas químicas, o homem até tenta reduzir atração física e afetiva a cálculos, produtos e problemas cada vez mais insolúveis. 

Desde a Antiguidade é frequente o apelo aos meandros da superstição para trazer a pessoa amada ou mesmo para afastar quem não é do agrado. Ovídio já se indagava a respeito dos conjuros de amor. Palavras seguidas de diversos protocolos sombrios. As defixionum tabellae, ou 'maldições romanas'Teria sido algum veneno tessálico que tornou assim fraco aquele homem? Ou alguma feiticeira teria gravado seu nome em tábuas de cera vermelha e cravado agulhas no desenho cordiforme? Desde o sempre dos tempos existe a relação entre a magia e a poesia. Faz parte dos privilégios humanos tentar manipular elementos mais inusitados para rearranjar a Harmonia Macrocosmica a seu favor. Dentre os mais óbvios, estão as palavras. Palavras são flechas que se pode lançar, certeiras.  Dardos cupidos que ferem ou afagam. 

A escrita é feitiçaria. 


De Frida Kahlo para Diego Rivera



Escrevi pra ela, mas não sei se leu. Não me respondeu. 
Ela vai voltar pra mim? 

É esperado que o apaixonado escreva. Quando não aventura a pena pelas páginas, todas promissoras diante da grandeza incabida no peito, ele deseja saber de algum modo dos sentimentos de sua paixão — aquele ser vivente que arde aos seus olhos, carne amadíssima, o doce mais delicado, um anjo enquadrado para sempre. Especula-se a recíproca. Apaixonados são especuladores vivazes que recorrem aos conhecedores do destino. E tem-se o tema clássico de toda a vastidão da Cartomancia, o favorito e mais rentável entre os adeptos. O amor que escrevo. Amor que faz querer saber de cada passo dado. Interesse abrupto. Mil perguntas aos leitores de símbolos. Afinal, estamos sob a mesma abóbada conceitual da combinatória quando falamos dos extensos bilhetes deixados no meio caderno, no chão da garagem ou na caixa de correio e quando tratamos dos arcanos. A analogia funciona com o Tarô: são cartas de amor. Seja por sonetos arquitetados na madrugada ou por imagens arquetípicas embaralhadas à luz de velas, o apaixonado busca os dois lados do mesmo ouro: dizer o indizível; saber do palpável. 


The Chelsea Lenormand
MALPERTUIS

O que nos revela, então, uma carta de amor? Indagação preciosa a todo e qualquer oráculo que se preza à verdade. A voz de quem lê revela a voz de quem se espera. Mais que isso, uma carta de amor fortifica a terceira pessoa, a pessoa amada na qual se transforma o amante. O conúbio alquímico de substâncias desiguais. CONIUNCTIO — a união de opostos, a geradora de um novo membro. Da alma e do corpo ao papel. E o Grande Senhor d'OS ENAMORADOS que a tudo preside.


ALCHIMIE
Nicolas Flamel

É a Copa o receptáculo da substância primordial por excelência. Água. Em várias civilizações e cosmogonia, precede a própria criação — o primeiro componente. Fonte geradora da matéria. Liga-se ao naipe de Copas pela fluidez: inspira e também respeita as curvas do vaso sagrado. Mãe da Estética. Regente do potencial criativo. Senhora absoluta das emoções. E se cabe um breve tratado etimológico do naipe, 'copa' vem do latim cupa. Precisamente 'vasilha grande'. Estamos diante do Cálice, o recipiente passado de mão em mão quando se bebe e se brinda. Símbolo da amizade e sugestão de solidariedade. Il Sangue di Cristo. Ambivalente por remeter tanto à ira quanto à alegria, na Bíblia. Taças diversas para expressar os humores de Deus. Os nossos.





Estamos, pois, na plataforma dos líquidos. Sangue, saliva, sêmen, lágrima. Tinta com que se escreve. O recinto do mênstruo. E como nada é à toa no Tarô, em Copas se celebra o Grande Rito. E Copas é coração, por sua vez. The Suit of Hearts. A redoma, o centro de onde irradia a ação do indivíduo. Centro para onde convergem as informações recolhidas dos órgãos dos sentidos. Não à toa, os egípcios embalsavam os mortos mantendo o coração em seu devido lugar. A sobrevivência no Além era impensável sem o coração.



Love Letters in Hakone
Tamiko Braun

Se as Copas aludem aos fluidos subterrâneos — àquilo que se brota, viceja e se prolifera nos recônditos — na estrutura do Tarô elas descrevem e enaltece nosso universo interior: alma, desejo, fantasia, aspiração. Os planos de vôo passam pelo delírio e são por ele consentidos. Tudo o que envolve o âmbito sentimental está em Copas, inclusive aquilo que não conseguimos mensurar em atos prudentes ou mesmo expressar em palavras. O gozo, a saudade, a satisfação da pele. Frente à necessária postura prática para realizar aquilo que tanto se quer, os valores pessoais se suplantam. Inabalável a busca pela felicidade verdadeira. É a casta sirênica. Estrada Real de toda a Lírica. Justifica-se como o naipe dos poetas. 


L'amante nel'amato si transforma

Uma carta de amor nunca é inocente. Tanto que é copiada de modo ininterrupto ao longo dos tempos. Eis o princípio da imitação, também caro à literatura clássica. Molde que se transmuta aos poucos. Alguns dos mais belos versos da língua portuguesa, por exemplo, obedecem ao mesmíssimo princípio. Camões que bebe de Petrarca. Embora se mantenha algum racionalismo. Quem se escreve não se abandona totalmente ao fluxo emocional. Mesmo que uma seja escrita sob a égide do coração inflamado, a Razão parece sondar cada parágrafo. Tal processo também ocorre no Tarô: um baralho novo em folha pode trazer roupagens diversas de um mesmo arcano. Acontecem várias deformações simbólicas, mas aos olhos atentos de estudantes e colecionadores, essas novas visões das cartas tendem a acrescentar algo ao arcabouço de experiências. 



Ace of Vessels
The Alchemical Tarot

ROTEIRO AUSPICIOSO pelas cartas de amor

Estamos em Copas. Se é este o jardim encantado de Eros, podemos nos servir das cartas para inspirar os períodos mais significativos. Guiados pelas suas mãos de flechas, é quase certo chegar a grandiosas investidas na comunicação escrita.  Debrucemo-nos sobre o protótipo a seguir, um básico-clássico-anônimo:


Amor,

Te escrevo para demonstrar o quanto você é importante para mim. Eu te amo e quero estar com você. Casar, ter nossa família, nossa vida juntos. Quero estar cada minuto da minha vida ao seu lado, celebrando tudo o que a vida oferece. Quero estar com você para o que der e vier.Assim como quero dar conta das situações que se mostram todos os dias, sem deixar passar nada, porque só penso em estar bem com você. Sei que talvez seus sentimentos já não sejam os mesmos de antes, por tudo o que tem acontecido entre nós. Mas sei de uma coisa: quero que tudo volte ao que era, pois não há nada mais puro do que meu sentimento por você. Quero, de verdade, que sejamos o casal que desde o começo fomos destinados a ser. Sair conhecendo o mundo, vivendo intensamente nossas emoções, nossos desejos. Sem olhar para trás. Deixando todos os erros no passado. Esperando o melhor, dando o melhor para você e para nós. Você é minha felicidade. E eu só quero te fazer feliz. Quero ficar com você até o fim dos tempos. Você é a minha vida. 

Te amo para sempre.


As cartas numeradas de cada naipe do Tarô representam uma série de processos. Agora pode-se fazer uma incisão no texto, de acordo com cada arcano. Tem-se assim vários atributos das respectivas cartas na sua ordem numérica crescente. Duvida? Siga o acróstico.


The Tarot of Prague
Baba Studio

Ás. Te escrevo para demonstrar o quanto você é importante para mim. 

2. Eu te amo e quero estar com você. Casar, ter nossa família, nossa vida juntos.

3. Quero estar cada minuto da minha existência ao seu lado, 
celebrando tudo o que a vida oferece. Quero estar com você para o que der e vier.

4. Assim como quero dar conta das situações que se mostram todos os dias,
sem deixar passar nada, porque só penso em estar bem com você.

5. Sei que talvez seus sentimentos já não sejam os mesmos de antes, 
por tudo o que tem acontecido entre nós.

6. Mas torço para que tudo volte ao que era, 
pois nada na minha vida é mais puro do que meu sentimento por você.

7. Quero, de verdade, que sejamos o casal que desde o começo fomos destinados a ser. 
Sair conhecendo o mundo, vivendo intensamente nossas emoções, nossos desejos.

8. Sem olhar para trás. 
Deixando todos os erros no passado.

9. Esperando o melhor, dando o melhor para você e para nós. 
Você é minha felicidade. E eu só quero te fazer feliz.

10. Quero ficar com você até o fim dos tempos.
Você é a minha vida. Te amo para sempre.


Pois é. Nada à toa.
Quem disse que as Copas não são didáticas? Não, elas não se resumem a uma receita única, pronta. Escrever uma carta de amor é como uma leitura oracular: tem-se os símbolos à disposição; os contextos, as medidas e a performance são variáveis. Infinitas possibilidades. Se do Ás ao Dez temos cada etapa do processo da paixão — o rompante, a delícia, a quebra de expectativas, o desejo de consertar as coisas e ainda o ressurgimento da harmonia no coração —, as quatro figuras da corte é que de fato encenam o arrebatamento erótico. Toda destreza de uma performance querubínica. É a família de Copas que nos interessa e nos revela. As cartas numeradas estipulam sucessivos itinerários do sonho, mas são eles os regentes do Amor. Quatro vetores, quatro emissários. A realeza do âmago. O grande poder que insufla a Musa camoniana.













Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.




Pajem é aquele que anuncia. 
O primeiro, o mais novo, aquele que se entrega às emoções. Sincero, prestativo, delicado, passional. Se não é quem escreve, é quem entrega. Modelo de pombo-correio. Tem em si todos os sentimentos do mundo, ainda em gestação. O portador da mensagem. 












Se nela está minha alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está ligada.



Cavaleiro é aquele que leva. 
O caminhante determinado a vivenciar o trajeto — aquele que alça vôo no próprio desejo. Sincero galante a galope, transmuta a vontade em performance. Leva a mensagem mas pode fazer-se remetente para enfeitiçar algum destinatário que lhe avassale o sexo e o peito.












Mas esta linda e pura semidéia,
que, como um acidente em seu sujeito,
assim como a alma minha se conforma,



Rainha é quem recebe. 
Imagem arquetípica da bruxa que ostenta seus filtros. É Circe, quase deusa.  E é Penélope — a que espera a mensagem, a que retém os segredos. Flana descalça pela praia, absorta no próprio amor. Ela faz um brinde aos mistérios. Senhora dos fluidos. 












está no pensamento como idéia:
[e] o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples busca a forma.




Rei é quem manda. 
Quem escreve e ordena que a mensagem chegue ao objeto amado. E, transformado nele, é a estrutura dos próprios sentimentos. Senhor e vassalo do coração devastado, do prazer definido, do romantismo administrado na carne. Embriaga-se, investe e demonstra.


Ainda entre os egípcios, acreditava-se que aconselhando, tonificando ou mesmo censurando o coração, ele se torna um ser independente, como se a essência divina aflorasse — o deus que habita em cada ser humano. E é em Copas que damos por esse caminho iniciático. 




Carta-puzzle de John Keats para Fanny Brawne
em
Brilho de uma Paixão, filme de 2009


Todas as cartas de amor são ridículas. Mas são tão sérias a ponto de revelar quem somos, o que desejamos e como vivenciamos o melhor da vida. Por isso mesmo não se deve subestimar as cartas de amor. Jamais. As primeiras que recebi ainda guardo, a seis chaves, no baú das correspondências mais puras. Talvez porque cada pedaço de afeto sobrevive no papel com mais destreza que na catedral da memória. E existindo nela, o coração se descobre mais forte, fazendo jus a si próprio. 


Uma carta de amor é o próprio Graal. 
A busca primeira, a magna condição da saga humana. Um poema condenado. O papel fundamental. 
O nácar da alma.





Nada é à toa nos braços do Amor. 
Nem no Tarô.










BIBLIOGRAFIA apaixonada


CENTENO, Yvette K. A Alquimia do Amor. A Regra do Jogo, 1982.
KING, Francis X. The Encyclopedia of Fortune-Telling. Gallery Books, 1988.
MAHONY, Karen. The Tarot of Prague. Xymbio, 2003.
MANGUEL, Alberto. História da Leitura. Companhia das Letras, 1997.
OVÍDIO. Amores & Arte de Amar. Penguin Companhia, 2011.
ROOB, Alexander. O Museu Hermético. Taschen, 2006.


31 de dezembro de 2012

2013

É o arcano das bifurcações 
que traça os perímetros de 2013. 

Até onde o seu coração quer chegar?




27 de agosto de 2012

REGAR AS PRÓPRIAS ESCOLHAS

ARCANO DIÁRIO  os enamorados | the lovers | gli amanti | les amants | die liebenden | los enamorados |





Amor é um campo negligenciado, não só mal interpretado. Há quem pense que o amor é como um ato de mágica: com um 'plin!' duas pessoas passam a se gostar para sempre. Mas não, o amor é bem mais que isso. Amor é escolha. E para administrá-la é preciso desarmar-se interiormente e munir-se de diálogo. Comece bem a semana regando suas próprias escolhas. Vá com calma quando não concordam com você e nem tente fazer a cabeça alheia. Ou mesmo o coração. O amor está nos detalhes e até nas diferenças. Administre com esmero tudo aquilo que faz o seu coração bater mais forte. O verdadeiro afeto só cresce quando alimentado com boas doses sinceridade e harmonia.


Para receber um Arcano por dia, acesse www.facebook.com/cafetarot.com.br, a maior página brasileira de Tarô do Facebook. Na foto: Golden Tarot of Klimt | LoScarabeo, 2005.

13 de junho de 2012

E QUANDO O AMOR VAI PELOS ARES?



Um dos mais frequentes temas de uma leitura de Tarô é o amor. Isso é um fato incontestável, dada a necessidade de saber o que os arcanos relevam sobre o contato pessoal, sobre o sexo e sobre a continuidade de um romance, por exemplo. Faz parte da natureza humana e é uma característica da nossa sociedade: o afeto nos afeta. Mas e quando uma relação anda às mil maravilhas e, de repente, por algum motivo, tudo desanda? 

Artigo em destaque na home do MSN. 
CONTINUE LENDO AQUI.

12 de junho de 2012

PREFÁCIO AO 'DOIS DE COPAS'


Tarot de Marseilles | Jean Noblet, 1650.
Restaurado por Jean-Claude Flornoy, em 2007.

Escrevi ontem sobre o Dois de Copas para o ARCANO DIÁRIO:

Até que ponto você é feliz com a felicidade dos outros? Dizem que ser amigo ou amante de verdade é permanecer presente sobretudo nos piores momentos. Mas o grande teste de fidelidade afetiva se dá nas circunstâncias felizes. Você suporta o êxito de quem você gosta? Se sim, parabéns, você vive e deixa viver, valorizando as escolhas alheias. Se não, então é bom rever seus conceitos e carências. Agir como um espelho emocional é uma experiência reveladora neste começo de semana. Reflita. Vale a famigerada regra de ouro: queira sempre aos outros o que sempre deseja pra você.


Eu poderia perder a tarde toda entre meu café e a simetria das duas Copas em Jean Noblet, as flores falantes de Vieville ou contemplar o frescor de Love, lâmina composta por Frieda Harris para Aleister Crowley. Arranjos visuais. Mas hoje, Dia dos Namorados, penso que o amor é só um tipo de prefácio ao Dois de Copas. Epígrafe viciada. Amor vai mais longe e alto. E dói e explode e corrói. Encanta e cifra os sentidos. O amor permeia o Tarô. Assim como o espanto, a glória, a ruína e a imaginação. 

Então espelhar o afeto e me imaginar no corpo de quem eu amo é um exercício de retorno ao Ás. Tornar-se uno. E perceber nesse reflexo o quanto há de bem-aventurança e de ignorância. De felicidade e de carência. E abraçar o desejo. Seduzir o coração. Dois espelhos projetados cuidadosamente inauguram o infinito. De ti, de mim.

O amor é só um resumo do Dois de Copas.
Talvez um palpite.


21 de julho de 2008

CARTAS DO AMOR

Um enigma de ouro, sangue e paixão
Detalhe de “La Primavera” de Botticelli, 1482.




"Il vous aime, c'est secret, lui dites pas que j'vous l'ai dit..."
Carla Bruni

Domingo é dia de Café Tarot. Pra mim é todo dia, principalmente durante as tardes ensolaradas do interior paulista onde me permito longa folga, aproveitando o jardim e a cortina de heras próxima à mesa com xícara, arcanos e livros bem distribuídos. Após uma leitura com um cliente antigo, levo meu café até a boca, ergo uma carta do Visconti-Sforza, próximo da fumaça: Os Enamorados. “Um banho de sangue”, penso alto assim que termino o gole.


O momento dos amantes – Tarô Visconti-Sforza Pierpont Morgan-Bergamo.
Eis a cena do enlace entre Francesco Sforza e Bianca Maria Visconti – sugestão de Stuart Kaplan no primeiro volume de sua Enciclopédia do Tarô. Seria essa ligação de sangue o motivo do vermelho vivo? As casas, praças e palácios milaneses, lavados pelo fluido da vida numa mistura de duques, nobres e governantes. Mas talvez o que se nota é que se torna inadiável, interessante e importante a ser comentado. O Cupido, acima do casal, tem asas rubras. A esfera direita do seu cérebro parece exposto. Do órgão genital, a vermelhidão sugere sangue expelido. Ou vinho, o próprio sangue dos deuses, embriagando os prometidos quando mostro o Ás de Copas transbordando na minha imaginação. Ele não voa; prostra-se sobre um pedestal quase imperceptível. Fico sabendo, posteriormente, que seria uma fonte. Aquela tal da Eterna Juventude, ainda mais na cidade plena das mil e uma construções. Suas asas, então, encharcadas. Penso nesses ornamentos. Dedico-lhes certo tempo enquanto os leio, ouvindo o canto de Safo.

Francesco Sforza e Bianca Maria Viscont - pinturas atribuídas a Bonifácio Bembo, 1460.
Não dá para atribuí-los apenas à deterioração natural do trunfo. Kaplan explica que o revestimento de fundo poderia ser de um ouro inferior ao dos demais arcanos. Sei que tudo faz sentido nas páginas do tarô. Muita, muita atenção.

O anjinho vendado segura uma flecha em cada mão. “Pois bem”, eu me pergunto, “cadê o arco, Cupido?”. “Está com ela”, me responde assim que desviro, por impulso do acaso, a lâmina mais próxima – A Morte. Tânatos que acompanha Eros, óbvio. Se eu tenho o esqueleto junto à primeira carta, percebo que têm sido equivocadas as noções do amor ao pensar que ele permanece (ou que deveria permanecer a qualquer custo) igual para todo o sempre. Mas o amor só é autêntico quando dá liberdade, já que tudo é uma constante transformação - ainda mais quando ele vem de repente, sem qualquer esforço, como um presente natural. Se verdadeiro, não morre; transforma-se. Noção básica da ciência. E do coração, claro.



A Morte (Pierpont Morgan-Bergamo) e Os Enamorados (Cary-Yale).
Aqui o pano que antes cobria a visão do garoto-amor está preso à testa do crânio. A Inominável conhece seus alvos. Cada um tem sua hora e ela não perde a mira. Parei. Brinco de quebra-cabeça com os dois arcanos – um antes, o outro antes do primeiro – experimentando uma seqüência para possíveis epifanias arquetípicas. Sempre possíveis, sabemos todos.

O amor, a morte, AMORte, escolhas, morrer, escolher morrer... ESCOLHER MORRER?! “Amar é deixar-se matar”. Pronto, consegui. As duas divindades gregas desabrocham em conceito prático. Atuar com o arco é uma função nobre, um exercício de espírito. É a arte do cavalheiro, que garante a caça, envolve a pretendente. Sempre carregando um sentido masculino, a flecha penetra e fecunda o veneno, agindo como um raio – modifica aquilo que toca. Ouço sempre dizer no duplo caráter do querubim dos casais. Seria, o outro lado, uma força perniciosa que conduz à ruína, já que exerce poder sobre os homens, sobre a constituição e o curso do Mundo.

Lanças e flechas sem saber em quem – ofício do nosso Eros – é antecipar mentalmente a conquista de um bem fora do alcance. Arriscar, brincar com/no acaso. E quem sabe se ele não espia lá do alto, por uma brechinha do tecido? Ele é quem transtorna, desequilibra e invade o mortal. É a morte súbita, fulmina a vítima. Tanto as do Amor como a da Morte, as flechas atingem o alvo bem no meio. São certeiras, apesar de tudo. Com Ovídio aprendi sobre elas: “se forem de ouro, elas inflamarão o pretendente”. É assim no Visconti-Sforza. O arqueiro do amor e o arqueiro da morte guardam este segredo. Conversam e competem, será?

Cena do casamento em 1441 na Igreja de San Sigismondo, em Cremona.
Pertencente ao “
Codice de Donazione”, 1464.

Não meço o tempo e puxo outra carta. Agora é o Luminoso que se mostra. Apollo, o deus arqueiro. Os relatos míticos garantem que suas flechas são do mais puro fluido da beleza, temperadas docemente em seu coração. Mas Apollo é também aquele que entrega a peste: para vingar honra de Crises, seu sacerdote, semeou a Morte no acampamento grego nas praias de Tróia. No Pierpont Morgan-Bergamo, temos o jovem sobre uma nuvem carregada, segurando o sol acima de seu corpo. É o rosto de Febo que reluz no tom ígneo. Do fogo, do sangue, da vida. E se for uma máscara? É uma possibilidade. O pequeno Eros, já que tem asas, faz o papel do deus. A encenação greco-romana dos sentimentos que rondam a cidade, lá embaixo. E então tomemos distância das banalizações sobre o Deus-Luz que o reduzem à figura de um belo rapaz eternizado em desgraças amorosas, ou então a uma simples oposição nietszcheana de Dioniso – nada de superficialidades agora. Apollo irradia vitória, domínio e entusiasmo pela vida. Casa a paixão e a razão: ilumina, conscientiza e transcende expectativas e desafios.

Posições semelhantes: Apollo arqueiro de 460 a.C. no Museu do Louvre e o Sol.
A moral desse enigma só pode ser esta: diante das escolhas ou mesmo das decisões do destino, morremos individualmente, já que o amor é encontro de vida e morte. Os amantes se deparam com o desejo de dissolver o “eu” e o “você” em uma unidade. Estão separados da própria origem e então caminham de volta para o todo. O desejo de voltar para casa, o próprio coração.

O Sol, portanto, chega para clarear a realidade e as necessidades afetivas. É a maturidade, a confiança, a nitidez, a entrega enquadrada e pintada no dourado. E qualquer um que tenha a audácia de afirmar que domina o baralho deve ao menos respeitar seus segredos e esforçar-se para traduzi-los sem pretensões. Deve deixar-se dominar por ele, como seus sucessores, clássicos e modernos. Deixar-se dominar pelo amor, no entanto, é uma conseqüência. Esteja o casal pronto ou não, ele morre, renascendo em união que ultrapassa os tempos. Concreto, lívido, presente. Como teria sido com o casal italiano. Em juramentos de sangue, em vinho, em ouro.


P.S.: AMOR que se mostra ao espelho: ROMA.
Embarco logo.


Leo



FONTES

Enciclopédia do Tarot - volumes I e II, de Stuart Kaplan.

Imagens: Google e Taroteca