28 de dezembro de 2009

PÍLULAS DA BEM-AVENTURANÇA

ou A Saga do Herói no Tarô


O herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo.




Há dois tipos de proeza do/para o herói. Uma é a proeza física, em que ele pratica um ato de coragem, durante a batalha, ou salva uma vida. O outro tipo é a proeza espiritual, na qual o herói aprende a lidar com o nível superior da vida espiritual e retorna com uma mensagem. O herói evolui à medida que a cultura evolui. É o feito típico do herói - partida, realização, retorno.



Na Idade Média, uma imagem predileta, que ocorre em muitos, muitos contextos, é a da roda da fortuna. Existe o eixo da roda e existe a borda da roda. Por exemplo, se você estiver preso à borda da roda da fortuna, você estará ou acima, no caminho descendente, ou abaixo, no caminho ascendente. Mas se estiver no eixo, você estará no mesmo lugar o tempo todo, no centro. Este é o sentido do voto de casamento - eu a aceito na saúde ou nada doença, na riqueza ou na pobreza: no caminho ascendente ou no descendente. Se eu a tomo como o meu centro, minha esposa é a minha bem-aventurança, não a riqueza que possa trazer-me, não o prestígio social, mas ela, em si. Isso é que é perseguir a bem-aventurança. Estamos vivendo, o tempo todo, experiências que podem, ocasionalmente, conduzir a isso, uma breve intuição de onde está nossa bem-aventurança. Agarre-a. Ninguém pode dizer-lhe o que será. Você precisa aprender a reconhecer a sua própria profundidade.



Nossa vida desperta o nosso caráter. Você descobre mais a respeito de você mesmo à medida que vai em frente. Por isso é bom estar apto a se colocar em situações que despertem o mais elevado e não o mais baixo da sua natureza. Chamar alguém de herói ou monstro depende de onde se localiza o foco da sua consciência.


Joseph Campbell
O PODER DO MITO

23 de dezembro de 2009

ARCANO INCONFIDÊNCIA

Estudo atribuído a Aleijadinho para a fachada da
Igreja de São Francisco de Assis.


ROMANCE XLVIII
OU DO JOGO DE CARTAS

Grandes jogos são jogados
entre a terra e o firmamento:
longas partidas sombrias,
por anos, meses e dias,
independentes do tempo...

Soldados e marinheiros,
camponeses e fidalgos,
ministros, gente da Igreja,
não há mais ninguém que esteja
fora dos vastos baralhos.

Batem as cartas na mesa,
na curva mesa da terra.
Partida sobre partida,
perde-se renome ou vida:
mas a perdição é certa.

Lá vêm corações em sangue,
lá vêm tenebrosos chuços:
defrontam-se ouros e espadas,
saltam coroas quebradas,
morrem culpados e justos.

Batem as cartas na mesa...
Cruzam-se naipes e pontos:
não se avista quem baralha
esta confusa batalha
de enigmas, quedas e assombros.

Grandes jogos são jogados.
E os silenciosos parceiros
não sabem, a cada lance,
que o jogo, fora de alcance,
pertence a dedos alheios.

Mesas de Queluz cobertas
de ouros, paus, espadas, copas...
(Minas, sangue, sofrimento... )
No baralho bate o vento
e o jogo segue outras voltas.


Cecília Meireles
Romanceiro da Inconfidência

1 de dezembro de 2009

PÉROLA DA PRUDÊNCIA


REI DE ESPADAS
Paulina Tarot


"Esteja sempre ao lado da razão e com tal firmeza de propósito que nem a paixão comum, nem a tirania o desviem dela. Poucos cultivam a integridade, muitos a louvam, mas poucos a visitam. Alguns a seguem até que a situação se torne perigosa. Em perigo, os falsos a renegam e políticos a simulam. A razão não teme contrariar a amizade, o poder e mesmo o seu próprio bem, e é nessa hora que é repudiada. Os astutos elaboram sofismas sutis e falam de louváveis motivos superiores ou de razões de Estado. Mas o homem realmente leal considera a dissimulação uma espécie de traição e preza mais ser firme do que ser sagaz. E se encontra sempre ao lado da verdade. Se diverge dos outros, não é devido à sua inconstância, mas porque os outros abandonaram a verdade."

Baltasar Gracián
A ARTE DA PRUDÊNCIA

21 de novembro de 2009

OS 100 ANOS DE RIDER-WAITE E AS JÓIAS DE PAMELA SMITH


Stuart Kaplan conseguiu. Depois de anos de dedicação à obra de Waite e fixação pela artista que concebeu o seu baralho, o dono da U.S. Games acabou de lançar uma caixa de jóias contendo o original do tarô mais copiado que existe. E não é pra menos, pois foi feito um estojo de luxo recheado de raridades para os colecionadores e fãs dessas cartas tão difundidas em todo o mundo, com direito a postais, retratos e livros.

O box comemora o centenário do tarô idealizado por Arthur Edward Waite e desenhado por Pamela Smith que aqui é rebatizado, com justeza, de Smith-Waite. A versão que consta é a mais antiga, com suas cores originais. Um livro de arte foi criado para registrar as contribuições de Smith ao mundo das artes gráficas por meio de revistas, cartazes, telas e pôsteres coletados ao longo de décadas. Sua notícia biográfica, também garimpada com esforço por Kaplan, assume o interesse de Smith pelo ocultismo, pelo folclore e pelas evoluções artísticas do seu tempo.

O dedicado colecionador também reserva espaço suficiente para o Waite relançando o seu dispensável The Pictorial Key to the Tarot, uma edição bem fiel à original. Um tarô e dois livros numa caixa de luxo. Uau!


Mas não, ainda não acabou. Se um livro de arte exclusivo de Lady Smith não é suficiente, há também seis cartões postais de suas magníficas pinturas, muitas delas para divulgar peças inspiradas em Shakespeare; três cartões maiores com outras telas, um retrato emoldurado da foto mais famosa que se conhece de Smith e um encarte com três métodos de leitura tradicionais.

O que mais me atraiu na "nova" versão do deck, no entanto, foi o aspecto de sujo ou manuseado por muitos, que deixa nítidos os verdadeiros traços da artista sem cores muito chamativas. O cinza, o amarelo e o verde que predominam em todos os naipes e o tom de azul que se destaca n'O Eremita lembram as composições de velhos gibis, como destacou muito bem a taróloga Solandia do Aeclectic Tarot em sua resenha. O verso das cartas traz esse azul antigo tão gradável aos olhos, a assinatura de Smith nas extremidades e a rosa que A Morte carrega em sua bandeira negra. Ah, ainda um outro presente: um saco de organdi na cor azul clara combinando com o verso do baralho que, finalmente, a editora considerou digno para um projeto desse porte.


Eu diria que é um belo presente para quem gosta de tarô ou de arte ou de ambos.
Na minha avaliação, nota 10. Vale a pena adquirir um registro tão importante e tão bem feito. Aliás, como sempre digo, tarô é arte.
E vice-versa, né?

7 de novembro de 2009

PASSAGEM



O êxtase do ar e a palavra do vento
Povoaram de ti meu pensamento.


MAR MORTO | Sophia de Mello Breyner Andresen

17 de outubro de 2009

A MULHER E O LIVRO


Woman Reading, 1890. National Media Museum, Kodak Gallery



Me desculpem os high-techs, mas A Papisa tem um livro no colo. Precisa dele. E o que há naquelas páginas? Pouco importa agora. O que vale é saber do objeto. O que vale é o livro.

Bibliotecas, salas de leitura, livrarias e sebos são alguns dos meus lugares favoritos. O universo do livro me atravessa. A imagem, os formatos, as capas, os miolos. E mulheres lendo, além de um vasto primor no mundo das artes plásticas e da fotografia, sempre agradam aos meus olhos. Sou suspeito — no baralho, eu pego a tal sacerdotisa, sempre ornada com luas aos pés e turbantes enfeitados, e dirijo a visão direto às suas mãos. O livro, o livro.



Tarot de Paris,  século XVII



Nas antigas imagens medievais e renascentistas, vejo ornamentos e detalhes essenciais aos pintores que as conceberam. Giotto e tantos outros sabiam que o livro emprega um simbolismo mais complexo que um vaso de flores, que geralmente tinha a intenção de honrar uma cidade, por exemplo. Uma pessoa lendo um livro, de qualquer idade e em qualquer situação, não só descreve como aumenta a sua grandeza. Repare. A sabedoria impressa é sedutora. Se um livro te comove porque é toca na sua humanidade. Apruma a visão e sofistica a manutenção da vida.

Em Florença, pude ver a grandeza do livro em inúmeras telas. Algumas de forma exagerada, com grandes calhamaços próximos às damas e em outras de maneira discreta, como no caso de Simone Martini em sua Anunciação: a Virgem talvez mais sábia que o arcanjo lhe trazendo o ramo de oliveira. Alguém lendo ou ao menos portando um livro cria metonímias nas quais o leitor passa a ser pincelado pelas páginas, tomando o cenário por essa simples atitude. 





A Anunciação, 1333. Simone Martini. Galleria degli Uffizi - Florença, Itália.



A Papisa, sabemos, não está voltada às paginas no momento da foto primordial do Tarô. Ela acalenta o livro. Tem domínio sobre ele porque é uma extensão de si própria. Essa mulher pode muito bem ser uma fidelíssima servidora da Sabedoria, antiga deusa destronada e sempre oculta no raciocínio dos verdadeiros simples e pretensos eruditos. A donzela, a mãe e a anciã do arcano II dialogam, meditam sobre e comungam com Ela. 

Assim como tantos gostariam de saber de fato qual livro Hamlet segura, eu gostaria de saber qual é o livro da grande bruxa dos Maiores. Se bem que pouco importa, confesso. E não me venha com a Torat ou o Yin-Yang de Wirth. Palavras, palavras e palavras, Polônio. A leitura é sagrada, eu sei. Mas A Sacerdotisa é o livro, mais que sua fé, suas intimidades e seus sacramentos. E se está logo no segundo quadro desse museu nômade da vida, é porque a dica está bem clara. Basta lê-la.





Marilyn Monroe por Elliott Erwitt, 1955



Aliás, o simples saber, querer, ou tentar ler nos confere um pouco de Papisa. Todos que se sentam confortavelmente (ou nem tanto) para degustar algumas páginas herdam o ritual silencioso do arcano. É exatamente isso que a torna imortal entre as côrtes e as alegorias vizinhas. E ao redor se engendra o silêncio, a mais bela canção do mundo. 

Boas leituras.



L.

8 de outubro de 2009

A(S) NOVA(S) CARTADA(S) DE MUTARELLI



E lá fui eu, na última terça-feira, até a Livraria da Vila da Fradique em São Paulo: lançamento de Miguel e os Demônios, novo livro de Lourenço Mutarelli - autor e ator de O Cheiro do Ralo. Foi também o relançamento de O Natimorto pela Companhia das Letras, romance - ou musical silencioso - em que o personagem associa as imagens dos maços de cigarros às cartas do tarô.

Conversei com ele sobre o oráculo e ele me revelou: "estudei bastante o tarô pra escrever e desenhar O Dobro de Cinco", graphic novel lançada pela editora Devir e vencedora do prêmio HQ Mix. ''Comecei a ver os cartas em tudo, na rua, nas imagens. É fantástico o poder desses arquétipos''.


O que me impressionou, além de Mutarelli também sofrer dessa mania, foi o mais que perfeito trabalho gráfico das edições, que agradam de verdade. Não deu tempo de falar que o livro, de certa forma, é um marco na literatura do tarô por dar a ele destaque e importância na sua trama genial. Mas tudo bem, isso eu deixo para as futuras resenhas.

Valeu, Mutarelli.
Sucesso.


L.


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5 de outubro de 2009

MATISSE,TAROT E FOTOGRAFIA EM SÃO PAULO


Matisse desenhando uma odalisca
, 1928.
Museé départemental Matisse, Le Cateau-Cambrésis.

Domingo é sempre dia de descanso, de passeio, de sol. Nessa onda de fotointerpretações se destacando em Salvador, arrisquei um novo poema. Acordei meio artista [e sei que isso não passa] e me programei pra visitar a Pinacoteca da estação da Luz. Matisse Hoje, mais uma exposição do convênio Ano da França no Brasil, vem ilustrar a programação artística do nosso país. Perfeito.

Um dos meus favoritos, ao lado de Van Gogh e Frida Kahlo, Matisse encanta fácil. Nessa mais que merecida mostra individual, que traz inúmeros de seus trabalhos, destaca-se Jazz. É nesse livro de recortes e colagens animados com guache que Matisse traduz os jogos de sons ritmos desse estilo musical. Completo por experimentar as artes visuais e plásticas em vários formatos e modalidades, Matisse se destaca por beber de fontes importantes como Cézanne e por adotar o Fauvismo como chave e motivo da sua riqueza de detalhes e cores. Chega a oferecer influências para a decoração e a inspirar os amantes do espaço harmonizado por móveis, plantas e tecidos.


Capa do livro Jazz, de Matisse.

Disponível para apreciação na Pinacoteca.

Por falar em inspiração, é impossível deixar passar batido o meu apreço por suas pinturas e também pelas fotografias de sua casa e de suas oficinas. Acabei lendo as imagens e associando-as à minha galeria interior, onde estão expostas grandes painéis de arcanos e suas mil combinações. E eis que na internet, fui assegurar que uma imaginação é realidade: um tarot de Matisse.


Matisse Tarot, de Jason Long. Tiragem limitadíssima.

Mas descendo as escadas da mansão , dou de cara com as exposições permanentes. Entre as fotografias de German Lorca, encontro as do português Fernando Lemos. É aí que o tarot se materializa depois de meus passeios pelos bosques de tinta e papéis combinados.


Auto-Retrato, 1949-1952

Um retrato do Pendurado, uma mesa com café e cadernos de desenho, lapidações de Brecheret e a imponência arquitetônica e artística de dois séculos: perfeito para um domingo perfeito. Olhos abertos, livres e repletos de matizes.

Leo






MATISSE hoje | aujourd´hui
Pinacoteca do Estado de São Paulo De 5/09 a 1/11
Aberta de terça a domingo das 10h às 17h30 | permanência até as 18h.
Ingressos: R$6,00 e R$3,00 (meia). Grátis aos sábados.

www.pinacoteca.gov.br

26 de setembro de 2009

ARTE E TAROT NA BAHIA



Minhas três interpretações da carta de rompimento que Sophie Calle recebeu do escritor Gregóire Boullier, o então X, foram selecionadas para encabeçar a exposição cuide de você de Salvador. Neste link você confere todas as obras escolhidas. Foi anunciado que seriam 20, mas no fim foram 34. Abaixo, se você ainda não viu, vai a imagem do Torre de Nós, que aqui você vê na íntegra com o poema que escrevi.



Valeu pelos elogios e comentários!
Axé! E cuide-se.


Leo

20 de setembro de 2009

O PENSAMENTO TAROLÓGICO de Alejandro Jodorowsky


Jodorowsky com as cartas de Marilyn Manson na mesa.


Meus longos anos de contato com o tarô me ensinaram novas formas de captar o mundo e o outro, permitindo que a intuição dance com a razão, amalgamando-se no que é chamado de “Pensamento Tarológico”. Os arcanos têm múltiplos significados que vão do particular ao geral, do evidente ao incomum. É necessário conceber cada arcano como um conjunto de significados. Estes significados adquirem maior ou menor importância de acordo com o sistema cultural de quem as interpreta.



Na realidade, cada ser humano é um arcano. Por mais que vivamos junto a alguém durante toda a vida, não podemos afirmar que o conhecemos muito bem ou por inteiro.



Estamos habituados aos seus pensamentos, sentimentos, desejos, gestos e atividades rotineiras, mas basta qualquer acontecimento extraordinário (uma enfermidade, uma catástrofe, um fracasso, um êxito) para que vejamos nesta pessoa os aspectos inabituais que nos surpreendem de forma positiva ou dolorosa. Parte da realidade é o que pensamos que é a realidade. Parte da personalidade do outro é o que projetamos nele. Os defeitos ou qualidades que vemos nele são também nossos. Estes inesperados comportamentos com que o mundo e o outro nos surpreendem causam reações que dependem totalmente do nosso nível de consciência. Num nível de consciência pouco desenvolvido, toda mudança nos assusta, nos fazem desconfiar, fugir, paralisar, enraivecer ou mesmo atacar. Uma consciência desenvolvida aceita a mudança contínua e avança confiante, sem metas, gozando da existência presente, construindo passo-a-passo a ponte que atravessa o abismo. O primeiro obstáculo que tive de vencer para oferecer leituras de tarô que fossem legíveis foram as antipatias e as simpatias. Cada habitante do nosso mundo representa um ponto de vista distinto, novo, que não existia antes de seu nascimento. Algo original, único. Quando morre alguém que amamos, sentimos que o universo inteiro se esvazia. Seja quem for o consulente, ele merece que o respeitemos como uma obra divina que nunca mais voltará a se repetir, com a possibilidade de deixar no mundo a sua marca, a semente de um bem desconhecido.



Não existe tarólogo impessoal. Todo tarólogo está marcado por uma época, um território, um idioma, uma família, uma sociedade, uma cultura.



Assim como na literatura o romance deixou de ser narrado por um escritor-testemunha – considerado um deus, que deixa acontecer sem intervir e nem ser afetado – para chegar a ser contado por um personagem intimamente ligado aos acontecimentos, um ator a mais na trama. Na leitura do tarô, tive de dar o mesmo passo: de nenhuma maneira suportei a idéia de me colocar na posição de vidente que conhece o passado, o presente e o futuro do consulente, observando-o de uma altura mágica, impessoal, emprestando minha voz a entidades de outro mundo. Sendo os arcanos telas de projeção, era necessário que eu desse conta de que tudo o que via nas cartas estava impregnado da minha personalidade. Não podendo me livrar de mim mesmo, perguntei: “quem sou eu quando leio o tarô? Meu pensamento é masculino? É latino-americano? É europeu? É adolescente? É maduro? Minha moral é judaico-cristã? Sou crente, ateu, comunista, servidor do regime estabelecido? Dou-me conta das características da minha época?”



Foto publicada no livro "Castelli di Carte", pela editora italiana Feltrinelli.


Para chegar a uma leitura útil, me dei conta de que, não podendo desprender-me da minha personalidade, teria de “trabalhá-la”, lapidá-la até chegar à essência. Prometi que não iria ceder aos modismos e não cair nas ciladas de nenhuma tradição e de nenhum folclore. Observei com atenção minha visão do mundo e, com todas as minhas forças, tratei de mudar minha mente masculina aceitando a feminina para então fundi-las até chegar ao pensamento andrógino. Nasci no Chile, me formei no México e na França e, interiormente, deixei de ter nacionalidade, chegando a me sentir cidadão do cosmos. Isso me ajudou a perceber os meus limites enquanto ser humano. Minha consciência não era mais prisioneira de um corpo mineral, vegetal ou animal; era a essência do universo inteiro, o qual permitiu me colocar no lugar não só das outras pessoas, mas também dos objetos. O que sente meu gato, esta árvore, o relógio que trago no pulso, o sol, os transeuntes por onde ando, meus órgãos, vísceras etc.?

Neste trabalho de desprendimento e refinamento, perdi não só a nacionalidade mas também a idade, o nome, os rótulos de “escritor, cineasta, terapeuta, místico” e tantos outros. Deixei de me definir: nem gordo, nem magro; nem bom, nem mal; nem generoso, nem egoísta; nem bom, nem mau pai; nem isto, nem aquilo. Também deixei de pretender realizar metas ideais: nem campeão, nem herói; nem gênio, nem santo. Tratei de ser, com todas as minhas forças, o que eu sou. Deixei de me ater apenas a um idioma e desenvolvi um amor e um respeito por todas as línguas, ao mesmo tempo em que me dei conta de que as palavras que não chegam à poesia se convertem em problemas. Acredito que a raiz de toda doença psicossomática é um conjunto de palavras ordenadas em forma de proibição. Impor uma visão é proibir outras.

O universo não tem limites e funciona com um conjunto de leis que são diferentes, às vezes contraditórias, em cada distinta dimensão. Quanto mais expandia meus limites, mais via os limites dos outros. Hoje em dia, quando leio o tarô, quase me converto em “tu” – me sento frente ao consulente como um céu azul que recebe a passagem de uma nuvem. Na verdade, não lemos o tarô para compreender o outro. O dia em que o compreendermos por inteiro, desapareceremos. Creio que, na realidade, o nosso verdadeiro consulente é a morte. Tratamos de entendê-la, pois quando morrermos, ou seja, quando formos ela própria, nos dissolveremos, por fim, na Verdade.



Nenhum tarólogo pode dizer a verdade. Pode apenas dizer sua interpretação da verdade. Quando se lê o tarô, nada se sabe.



Ele lê para compreender, por isso deve continuar lendo mesmo que não compreenda o que vê. Como toda interpretação é fragmentada, a abundância de interpretações faz com que o consulente chegue ao conhecimento de si próprio. Não existem perguntas insignificantes. As perguntas superficiais ou as profundas, as inteligentes ou as simples têm igual importância: posto que as interpretações de cada arcano sejam infinitas, o valor da pergunta dependerá não de sua qualidade, mas da qualidade da resposta do tarólogo. Dei-me conta de que compreender o que eu via era uma ilusão. Para compreender algo, na verdade eu teria de decifrar o que é o universo. Sem considerar o todo, é impossível saber com certeza o que é cada uma de suas partes. O consulente não é um indivíduo isolado. Para saber quem ele é, o tarólogo deveria conhecer sua vida desde o momento em que nasceu, a vida de seus irmãos, pais, tios, avós e, se possível, de seus bisavós. Além disso, saber qual educação recebeu, conhecer os problemas da sociedade em que viveu, os arquétipos e a cultura que formaram sua mente.

Sendo impossível captar a totalidade do outro, é impossível também julgá-lo.
A positividade ou a negatividade de um acontecimento não pertencem ao fato; são apenas interpretações subjetivas. Em respeito ao consulente, é preferível buscar sempre a interpretação positiva. Um tarólogo não deve comparar seu consulente com outras pessoas que se parecem física ou emocionalmente com ele. Comparar, com uma maneira de definir, é uma falta de respeito às diferenças essenciais de cada ser.
O consulente pode não conhecer a si mesmo e na maior parte das vezes ignorar as influências que recebeu de sua árvore genealógica. Se conhece um só idioma, se não viaja a países longínquos, se não estuda outras culturas, se nunca imobilizou seu corpo para meditar, se entre fazer e não fazer prefere não fazer, refugiando-se pelo medo do fracasso em experiências novas, seu inconsciente se apresenta não como ele é – um aliado –, mas como um mistério inquietante, um inimigo. Nunca saberá qual é a base real do que pensa, sente, deseja ou faz. E durante a leitura que suas perguntas, por mais superficiais que possam parecer, ocultarão processos psicológicos profundos. “Devo ir ao salão de beleza cortar o cabelo ou mudar de penteado?” Pergunta muito simples, aparentemente frívola, que sem dúvida pode render uma resposta profunda.

Se fosse apenas o que dizem as palavras, que necessidade teria a pessoa de ser aconselhada pelo tarô? Bastaria discutir com ela uma decisão a respeito. Mas também se poderia saber que com este corte ou troca de penteado, a consulente estaria expressando seu desejo de mudar de vida, abandonar a solidão ou, pelo contrário, terminar uma relação. Poderia também, sob outro aspecto, iniciar novas experiências, buscar reconhecimento, indicando que há insatisfação consigo mesma ou o descobrimento de novos valores que a obrigam a se desvencilhar de uma antiga personalidade.
O tarô nos ensina a respeitar todas as perguntas: cada uma delas significa uma



oportunidade de aprofundar o conhecimento de nós mesmos para vivermos plenamente como uma pedra preciosa nesta jóia que é o tempo presente. A maioria dos consulentes não se sente como algo ou alguém que “é”, mas como algo ou alguém que “será”. Toda generalização é ilusória. Os acontecimentos não são nunca similares. Quando se põe um frente ao outro, como exemplo, aquele que o cita emite uma concepção pessoal.

Para cada indivíduo, o outro é diferente. O outro, sendo parte de um todo infinito, por mais impossível de definir ao ser captado e interpretado por nós, recebe os limites que correspondem ao nosso nível de consciência. Este outro é uma mescla do que ele aparenta e do que lhe conferimos ao convertê-lo em nosso próprio reflexo. As qualidades que vemos nele, assim como seus defeitos, são parte das nossas próprias qualidades e defeitos. Ao julgar, ao medir os demais, ao colocarmos rótulos – bom, mau, belo, feio, egoísta, generoso, inteligente, idiota, etc. – estamos mentindo a nós mesmos.
A realidade não é boa nem má em si; nem bela nem horrível e nenhuma outra qualidade. A unidade divina não pode ter qualidades e nem ser definida por um tarólogo que não a compreende por não poder contê-la. O todo é todas as partes, mas todas as partes não são o todo. Em nenhum momento o tarólogo pode erguer-se em juízo de seu consulente e aceitar como reais e justas as visões que o consulente tem de seus familiares ou seres que invoca na leitura. No mundo, não se pode afirmar “tudo é assim”. O correto é dizer que “quase tudo é assim”. Se noventa e nove por cento é considerado negativo, não se pode excluir a positividade contida em um por cento. Esse um por cento é mais digno de definir a totalidade do que o restante negativo. Essa pequena positividade é capaz de redimir a grande negatividade. Por isso não se deve afirmar que o mundo é violento. Pode-se aceitar que há violência no mundo, demasiada violência, mas não defini-lo por esse fato. O mundo é tão perfeito quanto o cosmo. Igual é o ser humano. Não é conveniente afirmar que se está doente. O corpo humano é um organismo complexo, misterioso, que possui saúde. Estar vivo é estar são, física e mentalmente. Podemos ter enfermidades e atitudes psicóticas, mas por mais graves que sejam, não se convertem em um “doente” ou em um “louco”; não definem nosso ser senão nosso estado presente. O espírito humano, infinito, não suporta rótulos.
O tarólogo, mais que mostrar os muitos defeitos, deve tratar de captar as qualidades do consulente, pois mesmo que sejam poucas, o ajudarão a ser quem ele é de verdade. Não se deve definir o consulente por suas atitudes, mas sim definir as ações que o consulente tem feito. Ele não é “um tolo”, mas “fez tolices”. Não é “um ladrão”, mas “se apoderou de bens alheios”. Se o consulente é definido por suas atitudes, ele acaba sendo separado da realidade.



O valor de um leitura depende do nível de consciência do tarólogo. Se ele for sábio, pode obter valiosas mensagens por mais absurdos que possam ser os arcanos escolhidos pelo consulente.



A consciência do tarólogo confere sabedoria ou necessidade à sua leitura, mas os arcanos em si não são sábios nem tolos: eles não têm qualidades. As qualidades são de quem os interpreta. As leituras, apesar de sua importância, são sempre interpretações pessoais do tarólogo e por isso mesmo não deve obter validade de prova única ou absoluta. Nenhum leitura pode constituir a prova de um fato, por mais assertiva que seja. A exatidão e a precisão, em uma realidade em constante mudança, são dois obstáculos à compreensão. O desejo de perfeição, de exatidão, de precisão e de repetição do conhecido e estabelecido são manifestações de uma mente rígida que teme a mudança, o diferente, o erro, a permanente impermanência do cosmos. Esta atitude puramente irracional se opõe ao pensamento tarológico, que se assemelha ao poético. É como se escutássemos o poeta Edmond Jabés dizer: “Ser é interrogar no labirinto de uma pergunta que não contém nenhuma resposta”.



Depois que um arcano é interpretado de certa forma, é possível modificar, em outro momento, a interpretação. As interpretações não são os arcanos, eles não mudam, mas o tarólogo sim, enquanto ser que se transforma.



Nunca mudar de interpretação é teimosia. Toda a mensagem obtida pela leitura de algumas cartas pode ser contradita por uma segunda leitura dessas mesmas cartas. As mensagens não são extraídas das cartas sem as interpretações que são dadas a elas. Responder “não” a uma afirmação é um erro. Nada pode ser negado em sua totalidade. É melhor dizer “é possível, mas de outro ponto de vista se pode concluir o contrário”. A doença é essencialmente separação, ou seja, crença de se estar separado. A chave mágica que permite tanto ao consulente quanto ao tarólogo organizar positivamente sua passagem pelo mundo é a pergunta “a vida me faz feliz? Essas pessoas, esse país, essa casa, esses móveis, me fazem feliz nesta vida?” Se não me alegram a vida, significa que não me correspondem como companhia, ambiente, território, atividade - o que me convida a não me envolver com eles. Todo conceito tem um valor duplo, composto da palavra enunciada e uma contrária não proferida. Afirmar algo é também afirmar a existência de seu contrário. Por exemplo: feito (em relação a algo bonito), pequeno (em relação a algo grande), defeito (em relação a qualidade), etc. Fora dessa relação, o conceito não tem sentido. Sem se comparar, o consulente não pode saber quem ele é. A personalidade adquirida, não a essencial, se forma baseando-se em comparação.



Foto também publicada no livro "Castelli di Carte", que acompanha um dvd com palestra e entrevista exclusiva.


O tarólogo deve começar sua leitura ciente de que se dirige a alguém que é o que sua família, sua sociedade e sua cultura quiseram que ele fosse, pelo qual acredita ter metas que não são as suas, com obstáculos superficiais e problemas disfarçados de soluções.
O tarô poderá indicar-lhe sua natureza, suas metas, obstáculos e verdadeiras soluções fazendo-o ver a região silenciosa de sua existência. O que não sabe e o que sabe são partes da vida do consulente. O que não fez é tão importante quanto o que fez. O que não pode um dia fazer faz parte do que já está fazendo. O que ele foi e o que não foi, o que é, o que não é e o que será e o que não será constituem por igual o seu mundo.
Alguns consulentes, por medo de perderem aquilo que acreditam ser sua individualidade, não querem ser tratados e nem curados. Em vez de obterem soluções, desejam apenas ser escutados, amparados.
O tarô não cura; ele serve para detectar a chamada “enfermidade”. Cada um dos arcanos pertence ao mesmo tarô. Por isso, duas cartas

observadas juntas, ainda que pareçam ter significados absolutamente diferentes, possuem detalhes em comum. Diante de qualquer conjunto de cartas deve-se buscar entre elas o maior número possível de detalhes em comum.

Todos os seres humanos pertencem a uma espécie em comum e vivem no mesmo território, o planeta Terra. Por isso, duas pessoas juntas, apesar de serem de raça, cultura, posição social e nível de consciência diferentes, possuem características em comum. O tarólogo, abandonando toda a vaidade de sentir-se superior, deve captar essas semelhanças e concentrar sua leitura primeiramente nas experiências eu o unem ao consulente. Nada melhor que um “ex-doente” para curar um enfermo.



O mau tarólogo, que confunde “pensar” com “crer”, faz interpretações para então buscar nos arcanos os símbolos que podem confirmar suas conclusões.



A verdade para ele é a priori, seguida a posteriori pela busca da verdade. Toda conclusão é provisória e se amplia somente a um momento da vida do consulente, porque foi extraída de interpretações que, por serem pontos de vista do tarólogo, são limitadas. Dar conselhos ao consulente como “você deve fazer isso; não deve fazer aquilo”, é um abuso de poder. O tarólogo deve oferecer possibilidades de ação, deixando que o consulente decida ou escolha por si próprio. Tampouco o tarólogo deve ameaçar (“se não fizer isso, vai acontecer aquilo”), pois o que é feito de forma obrigada, mesmo que pareça positivo, atua como uma maldição. Se o leitor é antes de mais nada “eu”, sendo incapaz de converter-se em um espelho que reflita o outro, na verdade está usando o consulente para curar a si mesmo. Em vez de ver, se vê. No lugar de compreender, impõe sua visão de mundo. Ao invés de despertar os valores do consulente, o submete a um encantamento onde o tarólogo é um adulto e ele uma criança.

O tarólogo não é a porta, e sim a campainha; não é o caminho, mas sim o pano que limpa o barro dos sapatos, não é a luz, e sim o interruptor. O tarólogo não deve fazer promessas e nem bajulações (“Você tem uma alma nobre”, “é uma boa pessoa”, “tudo sairá bem”, “Deus lhe presenteará”, etc.), palavras vazias e inúteis que impedem a tomada de consciência. Para curar-se, o consulente não deve fugir do sofrimento e sim vê-lo de frente, assumi-lo para logo mais libertar-se dele. Um sofrimento conhecido é mais útil que mil elogios.Quando meu filho Teo morreu num repentino acidente aos 24 anos, uma dor indescritível desintegrou meu espírito. Eu assisti à sua cremação e, quando não acreditava ser possível encontrar consolo, vi meu filho Brontis aproximar-se do cadáver e colocar em sua mão um tarô de Marselha. Teo foi cremado e eu recebi em uma urna as cinzas desses seres sagrados. Para sempre, até o final da minha existência, os arcanos abraçados ao meu filho ocuparão um trono em minha memória. Aquilo em que verdadeiramente acreditamos e o que verdadeiramente amamos são a mesma coisa. A imensa dor da perda de um ente querido nos destroça a imagem que temos de nós mesmos. Se tivermos a coragem de nos reconstruir, seremos mais fortes e cada vez mais compreensivos com a dor dos outros.



Traduzido do italiano a partir da quinta edição do livro La Via dei Tarocchi, de Alejandro Jodorowsky e Marianne Costa, publicado em fevereiro de 2008 pela Giangiacomo Feltrinelli Editore de Milão. Publicado originalmente no Clube do Tarô: www.clubedotaro.com.br .

7 de setembro de 2009

ARCANOS PELO MUNDO #3


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THE HERMIT
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desenhado por Barrington Colby MOM
para o disco IV do Led Zeppelin.
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Hard Rock Park, EUA.

24 de agosto de 2009

INTERPRETAÇÕES


máscara de você / Leonardo Chioda

A exposição brasileira da artista Sophie Calle conta com uma equipe de profissionais que dão palestras, workshops e minicursos sobre escrita criativa e novas mídias, por exemplo, tudo no SESC Pompéia onde a instalação permanece até o dia 7 de setembro. No blog da exposição, os visitantes podem contribuir com sua própria arte - desenho, vídeo, fotografia, texto. Fiz minha parte. Desde a matéria na BRAVO! estava com água na boca pra participar de alguma forma. Ah, e serão escolhidos 20 trabalhos para estrelar a exposição em Salvador, a próxima parada do cuide de você. Bompacaramba.

Veja AQUI minhas intepretações.

até logo,

L.

9 de agosto de 2009

SOPHIE CALLE - carta para você


Sophie recebeu uma carta de rompimento.


E não sabia respondê-la.

Era como se ela não lhe fosse destinada.

Ela terminava com as seguintes palavras: “cuide de você”.

Sophie levou essa recomendação ao pé da letra.

Convidou 107 mulheres, escolhidas de acordo com a profissão,

para interpretar a carta do ponto de vista profissional.

Analisá-la, comentá-la, dançá-la, cantá-la. Esgotá-la.

Entendê-la em seu lugar. Responder por ela.

Era uma maneira de ganhar tempo antes de romper.

Uma maneira de cuidar de si.



2009 é o ano da França no Brasil. Acordos políticos são feitos, programas culturais negociados, o Airbus 447 caiu e os laços entre as duas nações se estreitam. Um amarrado ao outro – por comunhão, por afinidade, por arte, por tristeza, por cortesia, por beleza. Essa rima não foi previamente pensada, assim como não foi esperado o sucesso da exposição Prenez soin de vous da artista francesa Sophie Calle, que da Bienal de Veneza ganhou porto em São Paulo.

Sophie Calle e o telefone criado para ela pelo arquiteto americano Frank Gehry.

Meu primeiro contato com Sophie Calle foi no ano passado, durante o curso de francês. A Label France, publicação do governo que traz notícias da França em língua portuguesa, publicou a notícia do sucesso da artista contemporânea no país e, pelo que me lembro, anunciava sua passagem pelo Brasil. Gostei muito da ideia. Se para alguns (ou a maioria, talvez) Calle não passa de uma doida que não soube digerir um fora, para outros (a minoria, portanto?) sua obra é encantadora por ser a reprodução da realidade, da sua íntima realidade nas mãos de estranhas e também de amigas que manuseiam sua vida amorosa e daí são fotografadas, anotadas, filmadas. Mulheres que respondem por ela.


Os painéis ininterruptos de interpretações.

No âmbito das Letras francesas, Calle se destaca pela interdisciplinaridade – suas explorações, que misturam fotos com escrita e vídeos com músicas transformam o seu relacionamento (ou melhor, o seu rompimento) afetivo em metalinguagem. Meta arte.


A clown Meriem Menant e uma das paredes da instalação.

Mas se Sophie autoriza as interpretações de sua carta, me proponho aqui neste espaço a dar meu parecer. Pelo tarô, é claro. Não pelo e-mail em si, mas pela repercussão, pela obra, pela pessoa. Sophie diz: “Não exponho minha intimidade. Minha obra é sobre textos, imagens, instalações. Náo é um diário ou um blog.” Atitude do segundo arcano maior, A Sacerdotisa. Realmente nada se sabe do relacionamento com o escritor Grégoire Bouillier. Tanto que ela o identifica como X. Apenas o que ELE relata na carta, disponível a todo e qualquer visitante da exposição, é que dá repertório pra imaginar o caso amoroso. Ela, por sua vez, deixa sem resposta a questão “o que é realidade e o que é ficção”.


Prenez soin de vous no Pavilhão Francês da Bienal de Veneza.

"Eu pinto minha própria realidade", dizia a polêmica Frida Kahlo. É exatamente o que a também polêmica Sophie declara. Diante desse enigma tão bem trabalhado, acaba sendo impossível não associar a performance de Calle às cartas. Não por ter convocado a taróloga Maud Kristen para um das interpretações, mas por ser nítido o casamento entre imagem e texto – a captura do real para o papel. Aliás, tudo derivou do papel em cuide de você, como num baralho, que abre possibilidades a uma pessoa. Do simbólico para o real. Genial. Original.


A atriz portuguesa Maria de Medeiros,
conhecida por interpretar Anaïs Nin em Henry & June.


Em vez de sofrer, ironiza: “sou uma artista”. Mesmo apelidada de “Duchamp da roupa suja emocional” pelos britânicos, Sophie não desmorona. Ela combina recursos, tempera conceitos, funde mídias. É o arcano 14 em seu melhor ângulo.




E dessa mania de transformar pés na bunda em instalações e livros, de ser voyeur das próprias experiências narradas para o mundo, sobrepõe-se a exposição do outro, do desconhecido. Aliás, Sophie (sabedoria) Calle (rua) é a própria sabedoria da rua. Auspicioso, não? Seguir um homem de Paris até Veneza por dois meses (tarefa inusitada digna do Arcano Sem Número) e anotar seus passos em papel e em pixels e como montar um quebra-cabeça no escuro. Ou então escrever uma peça sem conhecer os personagens. Ou trabalhar com o tarô. Esgotá-lo, se é que isso é possível. Fazemos isso quando deitamos as cartas: descobrimos o outro para compor um pedaço de nós mesmos. Lemos as emoções e pensamentos para entender os nossos. Um curta-metragem no papel. Uma parede em branco com telas ininterruptas de movimento. Interpretações.


Maud Kristen sentindo a carta.


Bom, por falar nelas, a mais óbvia que me chama a atenção é a de Maud Kristen. Pra quem não sabe, ela é uma das médiuns mais famosas e respeitadas da França. Atende empresas, presta consultoria paranormal, atua como clarividente e é autora de alguns livros como Filha das Estrelas, publicado no Brasil pela editora Pensamento e Tarot of Eden ao lado da artista plástica Alika Lindberg – baralho que ilustra sua coluna na obra de Sophie Calle.

Kristen é uma profissional interessante, dedicada e ambiciosa: afirma querer usar a intuição, as artes divinatórias e a mediunidade de forma “oficial” em processos de decisão tanto pessoais quanto coletivos. É bastante íntegra ao interpretar o e-mail destinado à Calle, expondo motivos e segredos de X. Kristen coloca o texto à sua frente, embaralha suas cartas e deita-as viradas para baixo. Depois, escolhe cinco delas, organiza-as em cruz e pergunta: O QUE ESTÁ POR TRÁS DESSA CARTA?



Olhemos as cartas. Elas são desfavoráveis.


Um velho de capuz sozinho com sua lanterna. Em sua solidão desencantada, não há muito lugar para o amor. ESSAS NÃO SÃO AS PALAVRAS DE UM HOMEM FELIZ, POR CAUSA DO EREMITA.


Atormentado por animais, ele tateia cegamente para tentar encontrar seu caminho... Morbidamente instável, ele é como um graveto ao vento. ESSAS NÃO SÃO AS PALAVRAS DE UM HOMEM ESTÁVEL, POR CAUSA DO LOUCO


A IMPERATRIZ – ELA CONTROLA A RETÓRICA. Foi com a colaboração da Impatriz – protetora dos escritores – e a destreza que ele tem com a linguagem que ele conseguiu compor essa carta.



Lobos uivam para a Lua frente ao reflexo ilusório de uma mulher nua na água... Estamos entre mentiras e ilusões, entre o medo do espelho e a fascinação narcisista, entre a confusão e a complacência. ESSAS NÃO SÃO AS PALAVRAS DE UM HOMEM SINCERO, POR CAUSA DA LUA.

ESSAS NÃO SÃO AS PALAVRAS DE UM HOMEM ADULTO E LIVRE, POR CAUSA DO ENFORCADO.


A parede de Kristen na instalação de Veneza.

A conclusão da tiragem de Maud Kristen é que "nenhuma das cartas fala do desejo, amor ou lembranças. Em confronto com a confusão da LUA, a distração e a poligamia do LOUCO, o cansaço, a lassidão e o desinteresse pelos outros do EREMITA, o desespero suicida do ENFORCADO, ele tenta através da IMPERATRIZ fazer um último esforço para explicar. O que está por trás dessa carta é pior do que o que ela diz. É a carta de um homem que está desesperado, ameaçado, que teve que fazer um grande esforço para conseguir dizer alguma coisa."

Maud Kristen e Sophie Calle na Galeria Emmanuel Perrotin.
Foto de Lisbeth Carre.

Eu gosto da explicação de Kristen. Por um lado é divertida, como tudo o que Sophie Calle faz. Por outro, parece que enaltece a Imperatriz com atributos “positivos” – por ser a única mulher do jogo, talvez? Não gosto de dar palpites em tiragens, a menos que eu seja convocado para isso. Mas a interpretação da profissional francesa, por integrar a exposição de Calle, tornou-se arte também. Está emoldurada numa parede branca e então propensa a qualquer tipo de reação dos visitantes e dos entendidos no assunto. Por ser um deles, fico feliz em saber que o tarô é uma ferramenta artística de valor terapêutico indiscutível que ressalta a importância de “cuidar de você”.

E é por isso mesmo que não poupo tempo para dizer que a Imperatriz é a própria Sophie – a que protege o escritor e é a dona da banca. Melhor dizendo, a que projeta o escritor, o tal autor do e-mail, Grégoire Bouillier.

A cara do livro a cara do convidado surpresa.

E também é o próprio Louco aquele convidado surpresa que caiu na teia de lençóis de Sophie. Memorialista francês, Grégoire é um escritor “lento”. Demorou para chegar às livrarias – característica do Eremita que ilustra a disposição de Kristen – e deixou registrado o relato da festa em que conheceu a sua ex, a própria Calle. A Lua, carta dos problemas afetivos, das discussões e dos malefícios causados pelo e por amor, seria a construção imaginária do confronto desse ex-casal na Festa Literária de Paraty, Entre Quatro Paredes.


Sophie e Grégoire na Flip 2009.

É lá que a Duchamp contemporânea lava a roupa suja e o autor da carta se defende, rebate e faz as pazes com a mulher discreta que sabe até onde é capaz de divulgar sua vida pessoal. Ou então vira amigo da mulher promissora regida pelo arcano 3 do centro do jogo, que dá a volta por cima. Mas é, ainda, o Enforcado. Já pensou visitar uma mostra derivada de um simples fora que você deu em alguém? Nunca desconfiei da capacidade das que levam esse nome grego. Sabedoria personificada até nos momentos de fossa.


O que me excita mesmo é que as interpretações continuam inesgotáveis.
Da carta e das cartas.


cuide de você.




L.


VIDEOS PARA VOCÊ SENTIR

Saraiva Conteúdo – Sophie Calle
http://www.youtube.com/watch?v=3OpTa5t72Po&feature=related

Jornal da Gazeta – Sophie e Greg na Flip
http://www.youtube.com/watch?v=EfIahKEepBY&feature=related

Saraiva Conteúdo – Grégoire Bouillier


PÁGINAS PARA VOCÊ INTERPRETAR

Sophie Calle

Cosac Naify
www.cosacnaiff.com.br