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11 de novembro de 2013

A COR DO SÍMBOLO

Proserpina
Dante Gabriel Rossetti, 1874
Tate Britain, Londres


Mas la granada es la sangre,
sangre del cielo sagrado,
sangre de la tierra herida
por la aguja del regato.
Sangre del viento que viene
del rudo monte arañado.
Sangre de la mar tranquila,
sangre del dormido lago.

Canción Oriental | Federico García Lorca, 1920



Qual é a cor predominante do fruto d'A Sacerdotisa?

O segundo arcano maior é uma imagem de grande poder no Tarot. A Mãe Celestial. Pudica, permanece prostrada entre as colunas mais famosas de toda a literatura esotérica — B e J, o chiaroscuro dos dentros. Madame da polaridade, senhora do presságio. Shekinah, misticamente falando. The higher and the holiest of the Greater Arcana, segundo o próprio Waite. Claro que todos os arcanos são fortes em suas potencialidades simbólicas, é sabido. Confesso que A Sacerdotisa é uma das minhas figuras arquetípicas prediletas. Precedendo A Temperança e A Força, é a feiticeira mais poderosa do círculo, justamente por sustentar as colunas do mistério. Oráculo em carne e espírito. Diáfana. Noiva-enigma do mundo. Musa impassível [feito o mármore de Brecheret].

Dentre os ornamentos clássicos mais inquietantes, vejo eu, está a cortina em The High Priestess de Arthur Waite, concebida pela genial Pamela C. Smith. Não simplesmente por ocultar o mar às suas costas, mas principalmente pela estampa do tecido — uma tapeçaria ornamentada de romãs.


The High Priestess | Waite-Smith Tarot
U.S. Games Inc.

Romã no quintal. Romã no própolis. Romã nos livros.
Romã nas lembranças da avó. Romã nas pinturas. 
Romã nos oráculos. 
Romã na poesia. Romã nos sonhos. 

Romã. Escrever sobre.
Entendi.



Sofiko Chiuareli | The Colour of Pomegranates, 1968



A Musa do cartomante é a analogia 

Sempre que revejo A Cor da Romã [1968], meu filme-poema predileto do armênio Sergei Paradjanov sobre as vidas e as mortes de Sayat Nova, um trovador do século XVIII, me certifico da importância do estudo simbólico. Do ritual da imagem e do conceito, por assim dizer. A predisposição à pesquisa e à prática com absoluto cuidado e alguma demora. Uma performance exemplar durante a leitura do oráculo requer alimentação artística e histórica constante.

Letramento, interesse, disposição. Fúria. Assim, embriagado pela beleza do simbolismo bizantino temperado com magia poética, reuni alguns baralhos e comecei a garimpar a presença da infrutescência na simbologia arcana. Já via A Maga do Crescente Lunar na minha mente quando então passei aos outros arcanos até chegar em The Empress, do mesmo Rider-Waite Tarot: Vênus que veste as romãs. The fruitful mother of thousands. Daí para lembrar do famigerado Tarô Mitológico foi um pulo: estamos entre Mulher e Donzela, com o ventre de vastos códigos e significados.


Perséfone e Deméter
The Mythic Tarot
Fireside, 1986.

A única filha de Zeus com Deméter era agraciada pelos deuses. Koré, a virgem cuja beleza cintilava a ponto de suscitar o desejo de Hades: desposá-la, mesmo que sem o consentimento da mãe. Assim concedeu Zeus o pedido de seu irmão que, impaciente, a raptou enquanto colhia narcisos. Deméter, inconsolável, passou a se tornar cada vez mais relapsa em suas funções. Trouxe a esterilidade aos campos ao rarear os alimentos, suspendendo o ouro dos trigais. Enquanto isso, no Hades, Perséfone rebelava-se com uma greve de fome, logo começando a enfraquecer. Temerosos pela reação de Deméter, os deuses recusavam-se a revelar o paradeiro de sua filha. Depois de uma longa jornada, descobriu que a jovem deusa havia sido levada às profundezas. Decidida a manter a escassez na terra enquanto não reavesse Koré, a mãe é atendida por Zeus, que ordena ao irmão a devolução de sua filha. Porém, tendo a garota provado das sementes de romã dos campos de Hades, conclui-se que ela não havia rejeitado com veemência o seu raptor. Quebrar o jejum com um fruto do submundo significava prender-se a ele. Criou-se um elo, já que Hades de fato seduziu Koré pela doçura de suas sombras. Concedeu à esposa os caminhos ocultos por meio da infrutescência. Assim, estabeleceu-se um acordo entre as famílias: ela passaria uma parte do ano com sua mãe e uma outra com Hades, tornando-se Perséfone, a dos olhos negros. Regula, ao lado de Deméter, os ciclos de cada ano. A vida que brota e fenece. A fertilidade e também a esterilidade da terra.

Perséfone e Hades banqueteando.
Atenas, 440-430 a.C.

Brincando de bibliomancia enquanto relia o delicioso As Núpcias de Cadmo e Harmonia, caí na página do rapto, tecido com tanto esmero por Calasso: Core, a pupila, estava portanto no umbral de um olhar em que teria visto a si própria. Estava estendendo a mão para colher aquele olhar. Mas irrompeu Hades. E Core foi colhida por Hades. Por um instante, o olhar de Core teve de desviar-se do narciso e encontrar-se com o olho de Hades. A pupila da Pupila foi acolhida por uma semelhante, na qual viu a si própria. E aquela pupila pertencia ao invisível.



As sementes quando são desveladas

Sofiko Chiuareli | The Colour of Pomegranates, 1968
















Nem todos os mistérios que encerram a romã estão no papel. Até porque o exercício visual é necessário. Sempre. Percebe-se, com absoluta atenção aos detalhes, que no arcano II as romãs estão atrás da figura principal, enquanto que no arcano III, o fruto está sobre a figura — envolto em seu corpo. É nítido que A Sacerdotisa não indica necessariamente nem gravidez nem esterilidade, já que encarna a virgindade, persona casta que preserva seus mistérios e segredos. Inaptidão sexual. Desconhecimento ou silêncio dos próprios desejos. Já n'A Imperatriz, discretamente as romãs saltam aos olhos, confirmando os sintomas clássicos de prosperidade. Na primeira, o potencial [de sexualidade e fertilidade]; na seguinte, a latência. 



A Sacerdotisa e A Imperatriz
Waite-Smith Tarot | US Games Inc.




É do rastro de Afrodite, no Chipre, que nasce a romã. A primeira dádiva de seus passos. A composição carnosa da planta passa a ser associada à vagina, à condição intrínseca de fertilidade. Um estimulante — o afrodisíaco primordial. Em meio ao caos dos fragmentos míticos, o pomo púnico acaba se conectando à Maria [e à Igreja, já que a profusão de sementes representa a união, os fiéis em torno de Cristo, a vida que pulsa]. Em algumas catedrais e museus, principalmente na Itália, a representação se mantém. La Vergine. La Madonna della Melagrana. Nem todos os mistérios estão no papel mas também nos caminhos cíprios. Nas artes. Nos próprios mistérios. Artefato. Víscera da Musa.


Sandro Botticelli | Madonna della Melagrana, 1487.
Galleria degli Uffizi, Firenze, Itália.

La Papisa prepara una eclosión. Espera que Dios venga a inseminarla. Me lembro bem de Jodorowsky falando do processo de incubação do segundo Arcano Maior. Se ela pode traduzir-se como gestação, na próxima carta numerada temos o afloramento. Nasce e desenvolve-se o fruto. E James Frazer, famoso historiador entre os adeptos da Bruxaria, propõe Deméter como a colheita madura do ano enquanto Perséfone encarna a semente. A catábase de Koré seria uma expressão da semeadura. Seu reaparecimento então significaria o despontar do novo cereal. Assim, a Perséfone de um ano seria a Deméter do seguinte. Parir associações, sempre com o devido cuidado, faz com que as cartas tenham ainda mais sentido quando colocadas em evidência. O êxtase da leitura é a performance do olhar. Teoria e prática num ramo [de ouro e narcisos] bem consistente.




Uma descida aos infernos (da imagem)

Sofiko Chiuareli | The Colour of Pomegranates, 1968















Gosto de jogos imagéticos. Dos véus. Hologramas. Tanto que agora, descobrindo o Petit Lenormand, as combinações tem sido uma divina diversão. São feitiços. Pelo fato de nem sempre serem percebidos a olho cru, tonificam a voz do oráculo. A capacidade de versificar as figuras e compor um poema cada vez mais bonito e rico de significado. Interpretação de símbolos. E confesso que faço cara de origami quando me dizem que gostam da 'facilidade' que o Tarô Mitológico proporciona [ainda vigora esse tipo de argumento], mesmo que não consigam fazer dos mitos ali encarnados apenas uma sugestão à compreensão do arcabouço em vez de lindas, rápidas e definitivas roupagens aos arcanos, que por sua vez existem e significam por si próprios; como se o símbolo fosse um organismo hermeticamente exato e indiscutível a ponto de se sobrepor ao que o arquétipo cansa de caracterizar. Mas gosto de jogos imagéticos, gosto mesmo. E se às vezes vejo Perséfone n'A Papisa, devo ter toda uma bagagem de pesquisa para apropriar minhas impressões e constatar possíveis associações. Sair dizendo que a mulher n'A Estrela aparece nua porque está debilitada devido à destruição d'A Torre soa tão taxativo quanto absurdo. Mas este é um outro caso.

Faço de conta que uso o Tarô Mitológico e sorteio A Sacerdotisa numa leitura sobre o paradeiro de algum objeto, pessoa ou animal. Devo dizer que o elemento procurado se encontra abaixo de uma escadaria escura? Não, não necessariamente. Mas preserva-se a ideia de oculto, escondido, praticamente inalcançável a olhos nus — o Hades é o invisível que está ali, não?

As cores das Musas
instagram.com/leochioda


Uma ode ao bom senso. Um hino homérico. Os degraus infernais de Greene e Sharman-Burke são uma novidade simbólica, mesmo que a ideia de ocultação, mistério, perda e desencontro mantenha A Papisa guardando seu templo, reino tão rico em segredos. Ou nas alturas do Capitólio presididas por Juno, rodeada de pavões e romãs, uma representação alternativa do arcano. Também Hera, a grega, vivendo suprema em suas longas vestes de romã. Me lembro, aliás, das estátuas no Museo di Paestum, na Itália: a matriarca do Olimpo segurando uma criança e a fruta sagrada kourotrófos, aquela que nutre. Inatingível aos que não se permitem enxergar [o] além. E é a partir do mergulho nos ornamentos e atributos, sempre respeitando e preservando a estrutura clássica do conjunto de cartas, que posso vislumbrar os véus de Perséfone no segundo arcano maior. Até mesmo usando um Marselha.



A romã d'A Sacerdotisa
El Gran Tarot Esoterico | Fournier, 1978

Que haja coerência, portanto. Não só simbólica, respeitando cada sistema [astrologia é astrologia, mitologia é mitologia e tarô é tarô, mesmo que possam dialogar entre si], mas também interpretativa. E que os mitos, os dicionários de iconologia e as referências folclóricas sejam ingredientes à compreensão e à fortificação do poder de analogia dos símbolos. Não verdades inquestionáveis proferidas pelas bocas do achismo nem bengalas para se entender a dinâmica dessas imagens há tanto plasmadas em nossa cultura. Apenas afrodisíacos disponíveis para refletir o poder dos símbolos. As cores de cada um deles diante das mil faces da analogia.


O poeta morre, mas não a sua Musa, deixou o armênio Sayat Nova em um dos seus versos. E qual é a cor do símbolo? Pesquisa, fúria, atenção e qualidade. O sangue da excelência, vertido de todo árduo submundo. Só assim para que haja luz sobre todas as tonalidades de nossas cartas e palavras.


L.


The Colour of Pomegranates, 1968



Os livros no colo
BIBLIOGRAFIA SUGERIDA

CALASSO, Roberto. As Núpcias de Cadmo e Harmonia. Companhia das Letras, 1991.
FAUR, Mirella. O Legado da Deusa. Rosa dos Ventos, 2003.
GRAVES, Robert. O Grande Livro dos Mitos Gregos. Ediouro, 2008.
LAO, Meri. Musica Strega. Edizione delle Donne, 1977.
LORCA, Federico García. Poesía Completa. Galaxia Gutenberg, 2011.
SHARMAN-BURKE, Juliet. Os Segredos do Tarot. Editorial Estampa, 1998.

3 de abril de 2012

MANUAL PRÁTICO DE COMBATE AO VALETE DE ESPADAS


Detalhe do Pajem de Espadas | Rider-Waite Tarot, U.S. Games, 1971.



INSTRUÇÕES SIMBÓLICAS INICIAIS
_
Tenho revisitado o baralho de Aleister Crowley e Frieda Harris na companhia do sensacional 'Understanding Aleister Crowley's Thoth Tarot' de Lon Milo DuQuette (Weiser Books, 2003). Me debrucei sobre o arranjo iconográfico das armaduras, dos tronos e piras das figuras da Realeza, em específico sobre o da Princesa de Espadas — uma das poucas personas que não olham para quem se dá à leitura de imagens. A pequena cabeça repleta de cobras no alto do seu elmo remete à Medusa, famosa criatura mitológica tantas vezes incompreendida. Tal qual este arcano menor, cujos atributos negativos se sobressaem e o mantém quase sempre indigno de qualquer elogio.

Princesa de Espadas e detalhe do elmo | Thoth Tarot, AG Müller, 1986.

Quase, pois representa a parte terrosa do ar, a materialização das ideias. Se em Waite a lâmina atua como um pára-raio, em Crowley (só) a posição da arma é outra: 'Fixation of the Volatile', a espada voltada para o chão. Destreza em tornar viável aquilo que imagina. Brainstorms consideráveis, se bem trabalhados. Mensageiro(a) de novidades importantes. Do imaginável ao palpável. Ponto para a górgona, aludindo ao poder de transformar em pedra aqueles que sucubem ao seu olhar penetrante. Mas sua atuação nefasta é mais nítida e frequente, não há como negar.

Fleishman’s “Medusa” | Dark Mysteries #9, Master Comics, 1952.

 
COMO IDENTIFICAR UM VALETE DE ESPADAS
 
Criaturas invejosas, fofoqueiras, manipuladoras, vingativas e falsas — a ponto de sorrir de satisfação no pior momento para alguma ou várias pessoas — estão, certamente, regidas pela lâmina. Estas mesmas pessoas também carentes, medrosas, iludidas, vitimizadas, presunçosas e inseguras por trás de uma máscara de imponência estão sob a égide da pequena majestade de Espadas. Pela ótica oracular, se convencem do sucesso absoluto com a pretensão de serem Rei ou Rainha do elemento; se possível algo ainda maior e mais importante. Se alimentam de êxito e fracasso alheios e regurgitam veneno verbal. Olhos dissimulados de fúria e um pé na psicopatia. Ou dois.

A lâmina empunhada é a bandeira das tentativas previsíveis de sedução e conquista. E também da convicção de que são espertos e infalíveis em seus empreendimentos egocêntricos e em suas competições infundadas. Só que esperto é o ignorante que se acha inteligente. Daí a sensação de estarmos diante de um vilão brega cuja forma somente esse tipo de caráter consegue projetar. Macumba sem nenhuma classe.


PREPARANDO-SE PARA O COMBATE


A Medusa só pode ser degolada pelo poder da imagem refletida, 
pois quem a contempla diretamente é sobrepujado pela própria escuridão que possui.

Liz Greene 


Luke Cage & Medusa | Marvel, 197?.

A melhor maneira de desarmar alguém sob os domínios desta carta [que se acha] tão afiada é encarando-a. Sim, olhando de frente sem medo de virar estátua. Um Valete desse naipe pode ser descompensado na medida em que você se vê livre de todo e qualquer medo de suas investidas. A atitude mais sensata é bancar um espelho silencioso para que o feitiço supreenda o(a) feiticeiro(a). Devolver na mesma retina. Afinal, o que é um Pajem de Espadas se não uma criança faminta por liderança, influência, segurança, carinho e atenção constantes? Em seguida, sugiro dar uma de Perseu e cortar relações — da mesma forma que o herói separa do gélido pescoço a cabeça de serpentes num golpe de persistência, coragem e sabedoria (valha-nos, Athena). Pequenas atitudes, grandes reações: assim é que se torna possível abalar as estruturas do Trono do Ar.

Perseu (Sam Worthington) com a cabeça da Medusa | Fúria de Titãs, Warner Bros, 2010.

Porém, peço encarecidamente para não culpar o Tarot quando você se deparar com Medusas por aí. Como todos os outros 77, este arcano tem suas qualidades asseguradas em diferentes níveis de atuação e contexto narrativo. Há muito tempo, durante uma leitura, a consulente elencou a Princesa de Espadas ao ter escolher um arcano sobre ela mesma. Levando em conta que Medusa é uma figura intimamente associada à menstrução e aos poderes obscuros de toda mulher, confirmei que ela descobriu sozinha e com desconforto o próprio corpo e seus mistérios.
Cresceu praticamente desamparada, tendo apenas um apoio básico pra se tornar adulta e confiante em seus passos. The Winding Way. Mas rege também aquelas pessoas criativas, de imaginação livre leve e solta. Aquelas que sonham alto e muitas vezes são tachadas de ambiciosas e irresponsáveis por não medirem consequências. Aqueles que seguem passos de tiranos que se deram bem. Garotas que massacram garotos por pensarem só com a cabeça de baixo. Meninos que repreendem as namoradinhas por serem melosas e sentimentais e que humilham os amigos por não serem tão firmes no que dizem e fazem. Crianças que dominam a linguagem e moldam um brilhante perfil intelectual. Superdotados infantilizados pelas influências do meio que resolvem equações cúbicas mas não sabem arrumar a cama ou espremer um limão.

Um mundo de possibilidades em uma carta só, como acontece com todas as demais. Diferentes pontos de vista são necessários, daí a analogia enriquece. O combate só adianta se for contra o preconceito pelo que a imagem carrega, denuncia ou sugere. Melhor vê-la como um amuleto que petrifica quintas intenções alheias e afasta o malocchio, como tem sido perpetuado o poder da Medusa entre os que respiram Magia. Ícone de proteção. Justamente por esses motivos afirmo que encará-la sempre como uma carta "encardida" é o mesmo que limitar o seu desempenho simbólico. Se você não vai com a cara dela, vale o conceito de Nêmesis: ela deve estar brincando de reinar em algum beco da sua personalidade. Ou nos céus.

Looks can kill.



EPÍLOGO
_
Não, este arcano não deve ser levado assim, a ferro e veneno: sua contraparte luminosa — viva no arrojo das ideias e na destreza com que manipula informações — também se sobressai. Às vezes. E não, não publiquei este singelo manual pensando em alguém especificamente. Mesmo assim, em algum momento da vida, a carapuça nos serve. Não importa o tamanho do elmo. Nem o formato.


Gorgoneion,

3 de março de 2012

A FONTE DA TEMPERANÇA




À destra cristalina fonte murmureja,
numa clareira margeada de gramíneas.
Aqui a deusa sempre descansa da caça
e banha os membros virginais em água límpida.
Quando na gruta entrou, deu a uma das Ninfas
o escudo, o dardo, a aljava e o arco distendido;
outra nos braços recolheu a sua roupa;
duas lhe descalçaram os pés; a mais sábia,
a ismênide Crócale ata-lhe os cabelos ,
antes à nuca, embora ela os seus soltasse.
Néfele, Ránis, Híale, Fíale e Pseca
apanham água e vertem-na com grandes ânforas.

Ovídio | Metamorfoses, Livro III.

La saletta di Diana e Atteone | Parmigianino, século XV.



O tarô vai muito além daquilo que mostra e ainda mais longe daquilo que esconde. Para se ter ideia do poder da metáfora, um trunfo pode sugerir muito mais relações iconográficas do que uma leitura de imagens pode imaginar alcançar. Uma operação alquímica se estabelece entre fontes pictóricas de várias naturezas e possibilidades. A arte das cartas é, por excelência, a arte da combinação.

Tenho visto há alguns anos um trunfo curioso em diversos fóruns e publicações importadas. Ele faz parte do dito tarocchi de Alessandro Sforza, do século XV, preservado na coleção do Museo Castello Ursino em Catania, na Sicília. Debruçando-se sobre a lâmina a partir de um olhar simbólico, pode-se perceber que a figura feminina está bem acomodada sobre um cervo. Em suas mãos, prováveis ânforas tendo seus conteúdos misturados. TEMPERANZA, como bem se conhece. A dinâmica dos braços confirma o protótipo do décimo-quarto Arcano Maior.


La Temperanza | Tarocchi di Alessandro Sforza di Maestro Ferrarese (1450-1480). Museo di Castello Ursino, Catania.



Existem certos códigos aparentemente inacessíveis nestas pranchas antigas. Por ora deixo Sophrosyne (o conceito de moderação para os gregos), assim como os elefantes de Cesare Ripa e Etteilla. Somente um banho de pesquisa pode desencadear certa coerência de significado. Ou no mínimo um encantamento visual: pode-se configurar de tudo nestas cartas. Ater-se à mulher nua como uma representação de uma deusa é um mergulho no rito combinatório de atributos e sentidos. Um Olimpo pode ser escavado nos arcanos, mas com a necessária distância para não conjurar o caos simbólico. Assim o caráter divino dessas figuras nômades toma forma e complementa o esboço histórico.

Temperantia | Cesare Ripa, 1603.
La Temperance
| Grand Etteilla II, 1838.



Esta mulher sobre o gamo é Diana, a inspiradora deusa da caça. A virgem donzela que corre no Nemi. Embora não haja resquícios do crescente lunar sobre sua testa, a analogia é absoluta e perdura.
Diana sorpresa al bagno da Atteone | Cavalier D'Arpino, século XVI.




Acteon era um excelente caçador que se aventurava pelas florestas. Filho de Aristeu e neto de Cadmo, teve um destino nada invejável: ao cometer a indiscrição de admirar Diana se banhando junto ao seu cortejo de ninfas, pagou caro pela ira da grande deusa, que o transformou em um cervo. Logo em seguida, seus cinquenta cães não o reconheceram e o devoraram. Eternizada nas Metamorfoses de Ovídio, a fábula serve quase de atalho para o conceito que hoje se atribui ao décimo-quarto Arcano Maior. Em Camões também se dá o caso, o que tonifica o poder do mito indo além das Belas Artes.

Enquanto aí, à linfa, se lava a Titânide,
eis que o neto de Cadmo, deixando o trabalho
e errando em bosque ignoto com incertos passos,
chega ao recanto sacro; assim quis o destino.
Tão logo entrou na gruta úmida de fontes,
as ninfas nuas, vendo o homem, tal como estavam,
os peitos batem, e de súbito alarido
enchem o bosque, e rodearam a Diana,
cobrindo-a com seus corpos. Porém, é mais alta
a deusa que elas e ultrapassa-as, colo acima.
A cor, que sói tingir as nuvens quando o sol
as fere pela frente ou a da aurora púrpura,
foi a do vulto visto sem véu de Diana.
E ainda que o seu séqüito a rodeasse,
ela mostrou-se oblíqua e virou a cabeça
para trás; desejando ter à mão as setas,
a água que havia asperge no rosto do homem.
Molha os cabelos dele com água ultriz,
e lhe anuncia assim a iminente ruína:
“Agora, conta que me viste sem a veste,
se puderes.” Sem mais ameaças, espalha
na úmida testa chifres de cervo longevo,
estica-lhe o pescoço e aguça-lhe as orelhas,
muda em patas as mãos, e os seus braços em pernas
longas e com manchado pelo o corpo cobre-lhe;
e lhe põe medo. Foge o herói autonoéide
e admira-se de ser tão veloz na corrida.
Quando deveras vê o rosto e os chifres n’água,
“Infeliz de mim” quis dizer, e a voz não veio;
gemeu, e a voz foi isso; e em face alheia lágrimas
fluíram. Só sobrou-lhe a primitiva mente.


Acteon e Diana | Detalhes do afresco de Parmigianino.



Ainda sobre o arcano de Alessandro Sforza, Diana verte o cálice sobre o seu próprio sexo, coberto bela mão esquerda. Essa passagem serviria de ensinamento devido à práxis da época, quando se pretendia basear-se na mitologia para aplicar uma filosofia moral. A imagem mostra que o conceito da virtude vai além de domar a sensualidade e os prazeres carnais. Essa concepção iconográfica tonifica o conceito do rito de Anados, quando a deusa emerge anualmente e enaltece a própria virgindade banhando-se em uma fonte sagrada. O gesto talvez esteja longe de ser uma tentativa de controlar os ardores do sexo, mas sim a expressão clara da renovação da sua pureza virginal ao ligar os líquidos da terra com os seus próprios fluidos. Água e Água.



Temperantia | Gravura de Hans Collaert, 1557.



O final trágico de Acteon dialoga com a ideia da deturpação da virgindade de uma deusa por um mortal. E sendo o cervo a personificação do “esposo divino” sempre em busca de pretensas esposas e da fonte em que possa matar a sua sede, a transfiguração do homem em animal tem sua razão poética. Entende-se que foi uma atitude coerente a de Diana, dada a ousadia do caçador em profanar seu rito de purificação partilhado apenas entre as ninfas. A face cristalina da deusa se impõe.


Diana e Atteone | Matteo Balducci, século XVI.


Circundam-no e enfiam-lhe o focinho ao corpo,
dilacerando-o sob falsa imagem de cervo,
até que por feridas mil morrendo, dizem,
a ira de Diana Arqueira saciou-se.
A opinião se dividiu: a uns a deusa
pareceu mais cruel que o justo; a outros, digna
de austera virgindade. A razão tem dois lados.


O valor moral do episódio denuncia, portanto, uma postura temperante necessária: o homem deve domar os próprios instintos para atingir as águas da moderação. O cervo também assume a suavidade animal, que prefere a solidão aos tumultos da floresta. Serenidade, parcimônia e medo, outro atributo do temperante – o exagero é indigno. E a ira da deusa não pode ser confundida com perservidade tal como foi encarada por artistas e poetas desde a época de Parmigianino. A cada um aquilo que lhe cabe, simples e justo assim. Diana, mesmo em plena delicadeza prateada, é a regente do selvagem. Depois, preterida essa possível ligação da deusa para as futuras representações pictóricas da virtude cardeal (ao lado da Força, Justiça e Prudência), a Temperança assume o anonimato da alegoria, ainda que feminino. É todas elas, então.




Afresco encontrado na Hungria nos anos 2000, atribuído a Botticelli.



Diana, a caçadora. Diana, a deusa lunar. A de muitos seios, conforme define a antiquíssima fonte italiana baseada na escultura encontrada em Éfeso. Por vezes a alegoria surge com um peito à mostra: a castidade dando lugar à abundância. E assim, com as mamas à mostra, Frieda Harris concebe uma das lâminas mais lindas e enigmáticas do Tarô de Thoth idealizado por Aleister Crowley, que por sua vez conecta à Sagitário a deusa alquimista: o Centauro lança um sorriso a Ártemis. Logo abaixo de suas faces, recebe uma flecha perfurando o arco(-íris) de seus ombros. A referência garante a presença da deusa na modernidade do Tarô. Uma homenagem da Besta às gerações futuras. A Senhora da Arte prevalece, definitivamente.


Fontana di Diana Efesina a Tivoli, Villa D'Este | Itália, século XVI.
Art | Crowley-Harris Thoth Tarot. AGMüller, 1986.




A Temperança é um ritual. Opera alchimica. A fonte de cura das atitudes, a oportunidade de administrar a vida de acordo com um código intuitivo de conduta, visualizando as reações para toda e cada empreitada. Só a intenção de misturar os fluidos já requer habilidade. E implica a contenção sobre os resultados. Mesmo que em algumas representações seja possível ver Diana em pose sexual com o caçador-cervo, definindo-o como o seu consorte, na maior parte das versões ele se contém. Consente o erro pela tentação ao assumir sua condição de animal.


Diana and Actaeon | Balthus, 1954.




Mas o tarô é humano, assim como os deuses em suas emoções e fervores. Vieram de nós na mesma medida que os Trunfos vieram da poesia. Esse aparente resgate da fonte divina das lâminas vale tanto para ressaltar sua força simbólica quanto para exigir respeito ao que foi e continua sendo sagrado. Em cada enigma de tinta embaralhado a esmo. Em cada um que o lê. Vida longa às referências históricas e literárias. Elas são fontes de analogias para embebedar o homo ludens sedento por velhos novos saberes.

Aliás, fechando com Crowley, essa fonte de sabedoria pode ser vislumbrada pelo aforisma Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapidem: visitar o interior da terra é a metáfora possível para o cerne de si mesmo. Retificar o controle absoluto dos próprios verbos, das próprias ações. Combinações da própria história. Mesmo que a narrativa se perca com o tempo e só um fragmento possa vir a sugerir suas relações mitológicas. A pedra filosofal é cristalina na justa medida dos jarros. Tanto quanto a face da deusa.





BIBLIOGRAFIA CONSULTADA


CROWLEY, Aleister. The Book of Thoth. Weiser Books, 1996.

FRAZER, Sir James George. O Ramo de Ouro. Círculo do Livro, 1986.

GRAVES, Robert. A Deusa Branca. Bertrand Brasil, 2003.

GRIMASSI, Raven. Italian Witchcraft. Llewellyn, 2000.

RIPA, Cesare. Iconologia. TEA, 2008.
REFERÊNCIAS | internetIl Parmigianino a Fontanellato: La favola di Diana e Atteone | Primo Casalini
http://www.arengario.net/momenti/momenti25.html
La saletta di Diana e Atteone nel Castello di Fontanellato | Raffaela Terribile
http://rebstein.wordpress.com/2011/02/28/diana-e-atteone/

'Metamorfoses' em tradução | Raimundo Nonato Barbosa e Carvalho
http://www.usp.br/verve/coordenadores/raimundocarvalho/rascunhos/metamorfosesovidio-raimundocarvalho.pdf

31 de outubro de 2011

O ENCANTAMENTO DA IMAGEM


F.W.Guerin | Young Woman, 1902.

Nós costuramos
com a ponta da língua as flores no corpo

Os vértices dos ventos

Os cardos, as silvas
Os crespos sulcos do tempo


Turvamos os mares e as minas de água

as névoas secretas

onde as essências se afastam


À nossa passagem


Nós rojamos o tojo

Nós vergamos o luto
Nós plantamos as rosas selvagens


No vaticínio da aragem


SABAT
Maria Teresa Horta, 2006



'La Force', de Jean Noblet e 'Fuerza', de Salvador Dalí: arcanos do movimento sublime.

A imagem já me é viciada: a mulher que domina o leão é uma feiticeira. Lia esse poema de uma amiga [e uma das mais importantes feiticeiras de toda a poesia portuguesa] na varanda enquanto caía uma chuva fina. Fiquei pensando nas encantadoras, nas sibilas que compõem o oráculo. Na correlação do composto "mulher com leão". 

Hajo Banzhaf trouxe a ideia no Tarô e a Viagem do Herói, se não me engano. E desde então a vejo assim. Difícil encontrá-la sem flores trançadas pelo corpo. Quando abandona o chapéu lemniscata emprestado d'O Mago, assume a feminilidade e a felinização. O templo natural é o seu entorno. Manipula boca e juba como cordas de uma harpa. A dama escarlate de Crowley, pelas tintas e mãos serpentinas de Lady Harris, também dá conta do recado. Estrela, prostituta e sagrada. Aquela que manejava colunas é a que hoje sorri de leve com um felino em mãos. Da Fortitude ao Encantamento.

Claro que as outras mulheres arcanas são feiticeiras também. Todas, dependendo do momento e dos olhos do intérprete. Mas se temos a bruxa como a fêmea transgressora, é a da Força que se sobressai. A amante que conhece o próprio corpo, a que menstrua e prova do líquido desentranhado. A que dá um salto na fronteira entre os bons e desprezíveis constumes. A que gargalha na cara lavada dos fervorosos e que goza. A que corre com lobos. Com leões, naturalmente, emulados em cada casa de bruxa na figura majestosa do gato. E não cabe falar aqui sobre as problemáticas históricas da imagética feminina junto aos sortilégios. Cabe falar da poesia. E me perguntam alguns, maravilhados, que diabos tem a ver tarô com poesia. Ora, isso não se responde. Se sente. A compreensão de uma imagem por meio de palavras é tão extasiante quanto a via inversa, repare. Quando é que uma leitura lhe trouxe prazer, você se lembra? Então já existe um vislumbre da resposta. E não tem nada a ver com rimas e regras, só com a capacidade de conferir ou perceber beleza no grotesco, no selvagem e no vice-versa. Me lembrei da
Rainha das Fadas, poema de Edmund Spenser. Una, a famosa "The Fairy Queene" do autor, pode ser familiar pela tela enfeitiçante de Briton Rivière. Referência poética paralela à de Hércules ou Sansão com seus respectivos animais, tão válida quanto.

The Strength | detalhe do Morgan-Greer Tarot. U.S. Games, 1986.


Meu maior apelo tem sido ao processo contínuo de aculturação do dito tarólogo. E tenho até receio dessas terminologias todas, porque particularmente me valho de leitura de imagens e realizo leituras de tarô. Logo, sou um leitor de imagens, algo que vai bem além da mesa de consultas. Passa pelo jardim e pelo cinema, impera na biblioteca e segue pela rua. Cruza com as músicas, vai pelo café da manhã, pelo teatro e ainda pelo cemitério. Flerta com as fotografias e as madrugadas. Aprender a ver vai além de esboçar os arcanos numa folha em branco, rasgá-la e proferir os significados tradicionais no cúmulo do improviso. Não é só isso. Não, não e não. O leitor realmente interessado no seu ofício transgride as próprias imagens, sempre se valendo delas. E se não transgride a si próprio, não arrisca a previsão, não consegue orientar e não encanta o consulente com as lâminas
seus próprios reflexos. O leão, veja bem, é um convite ao além do convencional.


Una and the Lion | Briton Rivière, 1860.

Letrar-se iconograficamente é mergulhar na sua própria cultura. Eis um feitiço possível: a sua mitologia pessoal, a sua bem-aventurança, o seu espaço determinam a leitura de mundo. Domar leões atemporais sempre nítidos. E também cavalgá-los rumo ao presente, de olho no passado e organizando o futuro. A poesia, portanto, transgride. Tal como a imagem, a língua das antigas crenças, segundo a ativista pagã Starhawk, é a poesia: um discurso mágico por excelência. Por isso o link. O caráter caleidoscópico da analogia é tão válido e tão forte quanto a mandíbula do rei da selva.


Dandy-Lion | silhouettemasterpiecetheatre.com

E a tal dama é desde sempre a encantadora de reis. Também de plantas, pássaros, sombras e lugares. Alegoria generosa à mulher moderna e à mulher antiga, com todas as ressalvas patriarcais. Roupagem de sacerdotisa e espelho da própria deusa, universal e plural. Até mesmo um tanto frágil na aparência, mas estrondosamente destemida: uma ode apaixonada aos desejos. É do grande Oswald Wirth a afirmação de que A Força não glorifica o vigor físico dos músculos, mas o exercício do potencial feminino, irresistível na sua doçura e na sutileza em vez das explosões da cólera e da brutalidade vista na lâmina do Visconti-Sforza, por exemplo. 

Daí penso nas encenações simbólicas: a mulher casta do arcano II, a tal Papisa, deixa o seu posto [passivo, naturalmente] e vai brincar com o seu leão na clareira da floresta. Troca as páginas pela pelagem. A Imperatriz que alimenta o bichano e vai correndo brindar no Três de Copas, talvez? Bom, as possibilidades são inúmeras, porque as mulheres do tarô conversam entre si, furtivas. Cada uma como um livro aberto. Compêndio [infinito] de artifícios e charmes.



Fearless | Anahata Katkin.

Tenha um longo e perfeito Dia de Bruxas. Eu permaneço em casa, trabalhando. Depois paro, bato um papo com o gato, rego o jardim e medito ao longo do corredor intransitável de heras e flores. Seco os pés, volto pra dentro e trabalho mais um tempo ouvindo alguma feiticeira proferindo suas graças. Billie Holiday, Nina Simone. Ou Monica Salmaso, que descobri há pouco, graças aos orixás. Talvez Calcanhotto ou ainda Loreena Mckennitt. Ah, Bethânia e Madeleine Peyroux não podem faltar. Cada uma um mundo. Um feitiço. Como a imagem e o seu potencial de talismã.

A propósito, reúna as damas de todos os seus baralhos. Disponha todas elas em círculo, contando com você. Pronto, há um sabá acontecendo. Nessa arena de rituais que é o tarô, a dança espiral das metáforas não terá fim. Serão essas musas, silenciosas, no corpo dos seus enigmas.


Celebremos.




Detalhe do oitavo Arcano Maior de A. E. Waite por Pamela Colman Smith (1910)
e foto de Sibyl Anikeeff por Edward Weston (1921
).