26 de dezembro de 2011

ANIVERSÁRIO: TEORIA E PRÁTICA

Esse adubar do instante vivo
em pequenos vislumbres de memórias,
as siglas pessoais da arte,
mnemónicas para reconhecer-me.

Fiama Hasse Pais Brandão


Wooden Jigsaw Puzzle 
da mostra 'Ciencias Naturales' de Juan Gatti,
o artista dos cartazes de Pedro Almodóvar

Mais importante que o 31 de dezembro e o 1 de janeiro é o dia do Aniversário. O Retorno Solar é auspicioso. Um encontro e tanto. Tanto quanto as tradicionais festanças em torno da virada do ano, quando a maioria mantém a hipocrisia geral de prometer mudar e ser cada vez melhor e não cumprir nem metade do que se propagou durante o ano desgastado. Mas o durante o Aniversário não é bem assim. Não deveria. O lance pertinente é reavaliar as situações e as atitudes. Deixo de lado a maioria das superstições. Por isso, no dia de hoje, retorno aos rituais que brotam de mim.

Quando faço aniversário, penso um tanto no arcano 13, A Morte. A parteira negra acenando para mim. Mas não é um conceito grotesco, mas uma presença cujo intuito é fazer com que a cada ano me prepare em relação a tudo, Morte é regeneração. E sim, há muita vida na morte. A pele enrijece (se você cuida dela). Os músculos pesam. A coluna pede cada vez mais postura. A vista exige cuidados. E a beleza (podem me chamar de grotesco, agora) também está n'A Morte. Com o passar dos anos há melhorias pessoais. E negligências, para a festa ficar completa.

Death | Crowley-Harris Thoth Tarot.
AGMüller, 1986

E realmente há uma linguagem secreta dos aniversários, não? Sim, e muito proveitosa. 26 de Dezembro é o DIA DO INDOMÁVEL, segundo o livro de Gary Goldschneider e Joost Elffers*. Dia em que o truque de espelhos é tão bem realizado que pode passar em vão se não houver uma conduta simbólica, digamos, para perceber até que ponto sigo a nossa bem-aventurança. O meu aniversário é um fato isolado, costumo dizer. Um dia fora do calendário. Não é nada mole celebrar logo depois do Natal, com a correria das festas e das viagens na pauta.

Calor demais. Saturno, meu velho, rindo da minha cara por me fazer ficar entre poucos: como planejar uma (outra!) festa numa época tão conturbada? Não dá, desde sempre é complicado. E nem sei se eu me dedicaria a algo do tipo, sabe? Tem sido o momento em que me retiro um tanto e reflito sobre o ano que passou. Mas reflito MESMO. Sobretudo em relação ao que não passou. Ou eu engulo nesse limiar de transformação ou eu trato, aquiagora, sem papas na língua e no coração. Um dia de poder pessoal. Sobre mim e sobre o mundo.


Der Stern | Haindl Tarot
U.S. Games, 1988

Sou adepto das Constelações do Tarô. Temos um arcano na soma de nossa data de nascimento. O meu é o 8, A Justiça. O fator oculto dessa lâmina, que é outra, é a 17, A Estrela. Minhas lições de vida, digamos. Além de uma miríade de Menores que também ensinam, jogam na cara e fazem gozar. 


O TAROT, UM DIÁRIO

Tarot Journal | Traci Bunkers, 2007


Deixei os cadernos pautados há anos. Não registro quase mais nada. Só os arcanos. E os arcanos servem, sim, como páginas de um diário. Começo básico: tire uma carta por dia. Conselho com duração de 24 horas, ou menos. Registrá-lo tende a ser importante para avaliar, no final do dia ou do mês ( ou no aniversário!) o quanto você respeitou aqueles símbolos e, ainda mais, como eles se fizeram presentes naquele período. Páginas da vida. Mecanismos de papel encerado para tonificar a alma. O Tarô aceita o papel de ossatura das crônicas de todos nós.

O aniversário, portanto, não é um dia triste ou preocupante. Sei d'As Moiras apalpando a textura do fio, claro que sei. Compactuo com Elas. Uma marcação temporal para o fatídico. Até porque o inefável dança entre nós. Aniversário é a data em que vale trazer à consciência o peso das experiências — jamais negar a vida, mas senti-la. De verdade. E afirmo, agora, que ninguém 'faz' aniversário. Ele é que faz a criatura. Instiga, entristece, encoraja, envelhece, enrola. Mas também enriquece. De sabedoria e de algum sabor que o pomo do tempo carrega.

Sei dizer que encarar a Ceifadora como a Parteira pode ser útil, pelo menos a nível pessoal. Não por conformismo de que tudo acaba. Essa noção pouco conforta, mas é uma verdade nua-dura-crua e necessária a ser assimilada todos os dias. Mas justamente por ser possível administrar a existência com várias cores diferentes. As responsabilidades e os significados estão aqui, por enquanto. Passar incólume ou inteiro por essa vida é um baita sintoma de preguiça e descaso. Há de se ter um gosto pelas próprias cicatrizes.

Presente? A capacidade de assumir as tolices, reconhecer as boas sacadas e saber o meu tamanho. 'Nem pra mais nem pra menos', como diz Bethânia. 'O meu tamanho.'


Drink your Bliss 
Instagram @leochioda

Agora vou lá renascer um pouco — ler e escrever vertiginosamente, obrigado — e dar atenção aos telefonemas, e-mails, à campainha e às cartas. Ah, as cartas. Aproveito para fazer os votos de que você, que me lê e estuda o Tarô com paixão, se comprometa ainda mais com ele. De verdade. E que o necessário, só o necessário, seja sinônimo de excelência. Sim. 


Soul making. 
Always.


L.


*A Linguagem Secreta dos Aniversários

Editora Campus, 1999.

15 de dezembro de 2011

SETE NAIPES


2008


Minha amiga Ana Maria, do blog Psiulândia, deu continuidade a uma proposta interessante de uma blogueira: ela deveria indicar 7 links de seu próprio blog e depois mais 7 blogueiros para fazerem o mesmo, de forma a alcançar um número cada vez maior de pessoas. Achei interessante a ideia e decidi lançá-la entre os tarólogos. Por isso, aí vão meus 7 links e a minha lista de 7 autores indicados pra levar o projeto adiante. Uma blogagem coletiva que ajuda a revisitar nossa própria obra. Valeu pela indicação, Ana!


1. Meu post mais bonito:
Creio que foi um dos mais recentes: "O ORÁCULO EM DELFOS", aquele sobre a minha peregrinação por Delphos, uns dos santuários mais importantes da Grécia em termos de profecia. Foi ali que consagrei a Apollo o meu tarot e pedi coerência, responsabilidade e criatividade a todos os que se dedicam aos oráculos.

2. Meu post mais popular:
Certamente é "O FABULOSO TARÔ DE AMÉLIE POULAIN" que rendeu até uma palestra e um bate-papo na Livraria Cultura ao lado de Constantino Riemma (do Clube do Tarô) por conta do 'Ano da França no Brasil', em 2009.

3. Meu post que gerou mais controvérsia:
Creio que alguma das traduções que fiz da obra de Alejandro Jodorowsky. O cara sabe do assunto, mas parece sempre agir sozinho, gerando dúvidas e questionamentos por parte de profissionais que estudam a sério a estrutura e a história do tarô. Gosto da visão dele, mas discordo de muita coisa também.

4. Meu post que ajudou mais gente:
Creio que foi "O TARÔ EM PESSOA", em que analiso uma nota do grande poeta português. Recebi vários elogios por ter facilitado a aproximação entre o oráculo e outros saberes, como a Literatura. Tenho recebido muitos e-mails de leitores absolutamente satisfeitos com o que ando publicando e outros me cobrando por maior frequência de postagens. Prometo trabalhar nisso.

5. Meu post cujo sucesso me surpreendeu:

Certamente o da Amélie, que foi acessado em vários cantos do mundo.

6. Meu post que não recebeu a atenção que deveria:
Creio que o mais recente, "A IMAGEM E O ENCANTAMENTO". Ali esbocei algumas ideias para o leitor de imagens refletirem sobre sua própria condição de encantador de histórias e vidas. Um tarólogo é sempre plural. Um ser de poesia, antes e depois de tudo.

7. Meu post que mais me dá orgulho:
Creio que "O SILÊNCIO ENTRE AS DUAS LÂMINAS" sobre o Dois de Espadas, que quando publiquei senti que já havia atingindo alguma maturidade simbólico-literária.


Bom, espero que goste de rever esses textos todos, assim como tem sido importante pra mim revisitá-los. Então, pra terminar, deixo aqui 7 blogueiros que gosto muito e seus respectivos filhotes. Naipes que valem a pena o clique, pela pluralidade de ideias e, principalmente, pela seriedade que o leitor percebe a partir do visual e da atmosfera que os respectivos autores-tarólogos consolidaram como suas marcas. E que não venha alguém me dizer que isso não é importante.

Boa leitura,
boa viagem.


1. Zoe de Camaris do Zoe Tarot.
2. Giancarlo Schmid, do Alpha Symbolon.
3. Euclydes Cardoso, do TarotCabala.
4. Marcelo Bueno, do Zephyrus.
5. Ricardo Pereira, do Substractum Tarot.
6. Arierom Salik, do Blog de Tarô.
7. Giane Portal, do Astrologia & Tarot.

.

31 de outubro de 2011

O ENCANTAMENTO DA IMAGEM


F.W.Guerin | Young Woman, 1902.

Nós costuramos
com a ponta da língua as flores no corpo

Os vértices dos ventos

Os cardos, as silvas
Os crespos sulcos do tempo


Turvamos os mares e as minas de água

as névoas secretas

onde as essências se afastam


À nossa passagem


Nós rojamos o tojo

Nós vergamos o luto
Nós plantamos as rosas selvagens


No vaticínio da aragem


SABAT
Maria Teresa Horta, 2006



'La Force', de Jean Noblet e 'Fuerza', de Salvador Dalí: arcanos do movimento sublime.

A imagem já me é viciada: a mulher que domina o leão é uma feiticeira. Lia esse poema de uma amiga [e uma das mais importantes feiticeiras de toda a poesia portuguesa] na varanda enquanto caía uma chuva fina. Fiquei pensando nas encantadoras, nas sibilas que compõem o oráculo. Na correlação do composto "mulher com leão". 

Hajo Banzhaf trouxe a ideia no Tarô e a Viagem do Herói, se não me engano. E desde então a vejo assim. Difícil encontrá-la sem flores trançadas pelo corpo. Quando abandona o chapéu lemniscata emprestado d'O Mago, assume a feminilidade e a felinização. O templo natural é o seu entorno. Manipula boca e juba como cordas de uma harpa. A dama escarlate de Crowley, pelas tintas e mãos serpentinas de Lady Harris, também dá conta do recado. Estrela, prostituta e sagrada. Aquela que manejava colunas é a que hoje sorri de leve com um felino em mãos. Da Fortitude ao Encantamento.

Claro que as outras mulheres arcanas são feiticeiras também. Todas, dependendo do momento e dos olhos do intérprete. Mas se temos a bruxa como a fêmea transgressora, é a da Força que se sobressai. A amante que conhece o próprio corpo, a que menstrua e prova do líquido desentranhado. A que dá um salto na fronteira entre os bons e desprezíveis constumes. A que gargalha na cara lavada dos fervorosos e que goza. A que corre com lobos. Com leões, naturalmente, emulados em cada casa de bruxa na figura majestosa do gato. E não cabe falar aqui sobre as problemáticas históricas da imagética feminina junto aos sortilégios. Cabe falar da poesia. E me perguntam alguns, maravilhados, que diabos tem a ver tarô com poesia. Ora, isso não se responde. Se sente. A compreensão de uma imagem por meio de palavras é tão extasiante quanto a via inversa, repare. Quando é que uma leitura lhe trouxe prazer, você se lembra? Então já existe um vislumbre da resposta. E não tem nada a ver com rimas e regras, só com a capacidade de conferir ou perceber beleza no grotesco, no selvagem e no vice-versa. Me lembrei da
Rainha das Fadas, poema de Edmund Spenser. Una, a famosa "The Fairy Queene" do autor, pode ser familiar pela tela enfeitiçante de Briton Rivière. Referência poética paralela à de Hércules ou Sansão com seus respectivos animais, tão válida quanto.

The Strength | detalhe do Morgan-Greer Tarot. U.S. Games, 1986.


Meu maior apelo tem sido ao processo contínuo de aculturação do dito tarólogo. E tenho até receio dessas terminologias todas, porque particularmente me valho de leitura de imagens e realizo leituras de tarô. Logo, sou um leitor de imagens, algo que vai bem além da mesa de consultas. Passa pelo jardim e pelo cinema, impera na biblioteca e segue pela rua. Cruza com as músicas, vai pelo café da manhã, pelo teatro e ainda pelo cemitério. Flerta com as fotografias e as madrugadas. Aprender a ver vai além de esboçar os arcanos numa folha em branco, rasgá-la e proferir os significados tradicionais no cúmulo do improviso. Não é só isso. Não, não e não. O leitor realmente interessado no seu ofício transgride as próprias imagens, sempre se valendo delas. E se não transgride a si próprio, não arrisca a previsão, não consegue orientar e não encanta o consulente com as lâminas
seus próprios reflexos. O leão, veja bem, é um convite ao além do convencional.


Una and the Lion | Briton Rivière, 1860.

Letrar-se iconograficamente é mergulhar na sua própria cultura. Eis um feitiço possível: a sua mitologia pessoal, a sua bem-aventurança, o seu espaço determinam a leitura de mundo. Domar leões atemporais sempre nítidos. E também cavalgá-los rumo ao presente, de olho no passado e organizando o futuro. A poesia, portanto, transgride. Tal como a imagem, a língua das antigas crenças, segundo a ativista pagã Starhawk, é a poesia: um discurso mágico por excelência. Por isso o link. O caráter caleidoscópico da analogia é tão válido e tão forte quanto a mandíbula do rei da selva.


Dandy-Lion | silhouettemasterpiecetheatre.com

E a tal dama é desde sempre a encantadora de reis. Também de plantas, pássaros, sombras e lugares. Alegoria generosa à mulher moderna e à mulher antiga, com todas as ressalvas patriarcais. Roupagem de sacerdotisa e espelho da própria deusa, universal e plural. Até mesmo um tanto frágil na aparência, mas estrondosamente destemida: uma ode apaixonada aos desejos. É do grande Oswald Wirth a afirmação de que A Força não glorifica o vigor físico dos músculos, mas o exercício do potencial feminino, irresistível na sua doçura e na sutileza em vez das explosões da cólera e da brutalidade vista na lâmina do Visconti-Sforza, por exemplo. 

Daí penso nas encenações simbólicas: a mulher casta do arcano II, a tal Papisa, deixa o seu posto [passivo, naturalmente] e vai brincar com o seu leão na clareira da floresta. Troca as páginas pela pelagem. A Imperatriz que alimenta o bichano e vai correndo brindar no Três de Copas, talvez? Bom, as possibilidades são inúmeras, porque as mulheres do tarô conversam entre si, furtivas. Cada uma como um livro aberto. Compêndio [infinito] de artifícios e charmes.



Fearless | Anahata Katkin.

Tenha um longo e perfeito Dia de Bruxas. Eu permaneço em casa, trabalhando. Depois paro, bato um papo com o gato, rego o jardim e medito ao longo do corredor intransitável de heras e flores. Seco os pés, volto pra dentro e trabalho mais um tempo ouvindo alguma feiticeira proferindo suas graças. Billie Holiday, Nina Simone. Ou Monica Salmaso, que descobri há pouco, graças aos orixás. Talvez Calcanhotto ou ainda Loreena Mckennitt. Ah, Bethânia e Madeleine Peyroux não podem faltar. Cada uma um mundo. Um feitiço. Como a imagem e o seu potencial de talismã.

A propósito, reúna as damas de todos os seus baralhos. Disponha todas elas em círculo, contando com você. Pronto, há um sabá acontecendo. Nessa arena de rituais que é o tarô, a dança espiral das metáforas não terá fim. Serão essas musas, silenciosas, no corpo dos seus enigmas.


Celebremos.




Detalhe do oitavo Arcano Maior de A. E. Waite por Pamela Colman Smith (1910)
e foto de Sibyl Anikeeff por Edward Weston (1921
).


11 de outubro de 2011

SOB O SOL DA INFÂNCIA


A Criança Divina de Pamela Smith e Arthur E. Waite.


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O artigo seguinte, tira-gosto de um extenso capítulo de livro em já produção [e que você não perde por esperar], veio logo depois da publicação do ILUMINANDO SUA CRIANÇA INTERIOR, na Revista Personare. Clicando AQUI você o lê na íntegra para entender melhor essa postagem. Ou, se você já foi até lá, encare esta postagem como práticas e reflexões complementares. Boa jornada!
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Numa recente entrevista, me perguntaram quando é que eu comecei com o Tarô. Respondi que não comecei com ele, que ele é que começou comigo, há muitos e muitos anos. Minha avó tinha uma amiga cartomante que vinha em casa destrinchar o destino dela com aquelas velhas cartas coloridas. Fazendeiros ricos e mulheres de cabelo preto saíam bem costurados nas predições daquela mulher. Hoje, nem a minha avó nem a cartomante e nem as figuras [suponho] existem mais. Ou melhor, existem. Dentro de mim, como num filme encontrado pela metade, que termina justamente quando a reunião de mulheres me expulsava do cômodo da leitura. E até mesmo essa criança que eu fui, cujas lembranças já se parecem com um sonho de duas semanas atrás, existe aqui dentro de mim. Teve uma vez em que decidi me reencontrar com ela. E foi absolutamente mágico. Se há alguma verdade nas técnicas de visualização e projeção, é essa: você é a chave para você mesmo. E o que encontrar aí dentro é tão novo como se nunca tivesse acontecido. Mas também pode ser dolorosamente repetitivo, triste e carregado como uma situação ruim. 

Resgatar a infância é possível e nos faz crer que o que somos é uma construção contínua: paredes de traumas, pisos e tetos de alegrias e risadas e também escadarias milimetricamente feitas de medo. Você já abraçou uma criança? Essa experiência é única na vida, ainda mais quando ela é você mesmo. Acredite, é possível.


SEUS ÁLBUNS, SEU ORÁCULO

E se eu dissesse que existe um arcano esquecido dentro de você? Pois é, existe. E você pode encontrá-lo. E mais de um até, se você tiver atenção e olhos firmes às lembranças. Fotografias antigas funcionam como cartas de Tarô: são imantadas de poder por retratarem nada mais do que nós mesmos. Reveja alguns dos seus álbuns. Certamente existem fotos arcanas dentro deles. Seus próprios mitos, portanto, que você nem se dá conta de que existem e vigoram.



O Mago, desde pequeno remexendo a imaginação na terra. Promessa de Ouros
Tarot de Marseille - Grimaud



Dialogar com essas imagens é mais do que terapêutico. Proporciona um encontro genuíno com o que foi deixado para trás. Negligenciar a saúde emocional de uma criança é triste, mas perdoável quando tomamos responsabilidade pelo que fomos um dia. É como tirar o próprio Pinocchio de cena quando se lê o livro. Não seria mais Pinocchio, já que a fábula não procede sem ele. Temos essa oportunidade de revalorizar nossa própria história e nem nos damos conta! O que sempre vale é a vergonha das roupas, das poses e dos momentos em família que lutamos para esquecer, não é mesmo? Grande engano nosso. O passado é mais vivo do que nunca, tão mutável quanto o presente e o futuro. Sem ele, dificilmente uma leitura de Tarô procede. A narrativa da vida é passível de revisão assim como o futuro pode ser vislumbrado e programado, até certo ponto.



Galopando com o destino no carrossel de estrelas.
Tarot de Marseille - Camoin Jodorowsky


O Tarô é um brinquedo. Antes e depois de tudo. Serve para brincar, como diz Johann Heyss no livro O Tarô de Thoth. Sua natureza lúdica serve de engrenagem ao imaginário, ressaltando que as 78 cenas nasceram e se valem dele. Fazer de conta que cada figura humana que elenca as cartas é uma criança num mágico parque de diversões, com cavalos, esfinges e outros seres fantásticos que povoam a nossa imaginação é também uma metáfora poderosa para a nossa condição de leitores de imagens e consulentes, por consequência. O estudo dos símbolos, aliado à nossa criatividade, tonifica o poder de reflexão e transformação do oráculo. Por quê misturar os fluidos das ânforas n'A Temperança? O que tem dentro do cálice maravilhoso d'A Rainha de Copas? E o livro no colo d'A Sacerdotisa, qual é? Tem figuras? Mostre o Tarô a uma criança e faça essas perguntas. A ingenuidade simbólica é também um caminho para a maestria. D'O Louco aos quatro Reis de si mesmo, conferindo sabedoria e intuição cada vez mais notáveis.


A Criança Divina do Druidcraft Tarot, de Philip Carr-Gomm
Arte de Will Worthington


O exercício que propus no artigo da Revista Personare tem como base o décimo-nono arcano marselhês. Mas em todo e qualquer Tarô [que se preze], O Sol corresponde a esse portal que possibilita o contato e a narrativa constante com a sua criança interna.

Aliás, qual é a história da sua infância?
Pergunte ao Tarô, esse mapa colorido que você tem em mãos. Tire três cartas (a clássica configuração das infinitas combinatórias) e analise o que você vê. Experimente, não tenha medo. Mas se tiver, não pare. O escuro pode sempre receber alguma luz vinda de você.


E eu sei que vai ser radiante.



Leo

8 de outubro de 2011

O MAGO DA MAÇÃ



A matéria de Arnaldo Bloch n'O Globo me deixou mais aliviado diante do genuíno endeusamento que Steve Jobs tem sofrido desde quarta-feira com a notícia de sua morte. O mundo virtual desabou em lágrimas. Mas o endeusamento é sempre traiçoeiro. Importa que cara era bom. Mexeu de jeito na máquina do mundo. No cotidiano do homem. E só quem tem um Apple, por menor que seja, é que sabe do milagre que existe ali. Mesmo assim, todo o cuidado com o burburinho paga-pau. Menos, né? Menos.


O Mago Jobs elevando um dos seus trunfos (!): o iPhone.

Pensando nas analogias possíveis com o oráculo, o fato é que Jobs foi o verdadeiro Papa da revolução tecnológica. No tarot, a verdade é que ele se enquadra no frame do O Mago. Sim, porque quem inova primeiro é justamente o primeiro arcano. E a partir disso, da criatividade que ultrapassa o verbo é que ele se distingue do quinto elemento Maior, o eleito e amado pelo povo sob diferentes primas e circunstâncias. Não agrada a todos. Aliás, quem agrada? Os elementos do grande batelleur são combinados ritualisticamente para alcançar o topo d'O Mundo. E isso, inegavelmente, Steve Jobs conseguiu com todo o trabalho possível e impossível digno de qualquer alquimista sério e empenhado na busca pela sua pedra filosofal, lindamente personificada numa maçã. A menina dos olhos da tecnologia contemporânea. Que tal? Magia maior não há.


E o Mago Smith-Waite com o símbolo máximo do bendito fruto.

Nascido em 24 de fevereiro de 1955, o Arcano da Vida desse pisciano foi a Roda da Fortuna, que ajuda a vislumbrar a rapidez com que criava e inovava. E também com que partiu dessa existência. A Unidade face à Diversidade. O eixo responsável pelo movimento. Agente imbatível de expansão e consolidação das ideias. Uma mente privilegiada ou um aplicativo sempre atualizado. Teve a seu favor, de acordo com a configuração da sua constelação tarológica, os quatro Ases e os quatro 10 dos Arcanos Menores. Viu brotar, ao lado das janelas de Bill Gates, as suas próprias sementes. E recentemente sofreu na pele o próprio fim. Triste. Mas nem por isso deve vir a ser martirizado, como todo bom ser humano costuma fazer tanto com quem morre cedo quanto com quem se destaca além do imaginado. Ou as duas coisas, neste caso.


Montagem disseminada pelos usuários do Facebook.

Não existe uma religião da maçã. Não e não. O high tech existiria normalmente sem Steve, que se foi tão cedo. Recebidos os devidos méritos, eu o mantenho próximo ao prestidigitador. O fruto evolui. E diante das críticas ao capitalismo violento, Jobs também tem seu pedestal reservado. É criticado e massacrado pela produção e necessidade que os golpes de marketing da marca desferem nos clientes quase que na mesma proporção em que é amado, reconhecido e divinizado devido à facilidade e à beleza dos seus inventos e à sua filosofia de vida, cujas frases bonitas pululam hoje pelo facebook. Par a par com os axiomas de Sócrates e de Da Vinci. Excelência no engajamento criativo. Mas endeusamento pra quem é morto já é um golpe baixo. Como se defender?

Bom é manter a atenção no que ele fez, ponto final. Quem passa imune? Não, nem mesmo você que nunca tocou num iPod. Olhos no palpável, com os devidos cuidados. Cada um faz o melhor que pode e alguns vão além. As maçãs não vão parar de brotar.




Think different,


L.

5 de outubro de 2011

SOBRE A NATUREZA DA LEITURA

“Everyone probably thinks that I’m a raving nymphomanic,
that I have an insatiable sexual appetite, when the truth is I’d rather read a book.”


Madonna


'Madonna reading books' em montagem minha sobre moldura do Thoth Tarot, AGMuller, 1986.


De um e-mail recebido ontem:
"Quero MUITO aprender tarot. Mas tenho que ler muita coisa?"

Sim, tem MUITA. E vai ter sempre. Mas se você tem preguiça de ler, não se aproxime do tarô. Feche esse blog, inclusive. O maquinário do Tarot é a leitura, não um raio divino sobre as figuras que lhe concede a honra de falar sobre o passado e o futuro das nações ou sobre os rumos da vida alheia. Quando consultamos, lemos os movimentos dos arcanos, o que se pode fazer, para onde se pode ir e como se posicionar frente a essas possibilidades. A combinatória é articulada porque a leitura é crucial, justamente. Eis o alimento da metáfora. O primeiro passo para qualquer leitor (!) de tarô.

Aliás, decorar um livro ou apenas esquematizar um quadro com os atributos-chave de cada arcano não faz de ninguém um leitor. Quem memoriza alguns poucos significados não possui habilidade o suficiente para realizar uma leitura profissional. Aliás, só na posição de consulente é que se sabe do poder do tarólogo, como bem disse minha amiga Zoe de Camaris outro dia, durante uma inspirada conversa sobre livros. É ali, diante dos espelhos que são as cartas, que a leitura se dá. Eterna arena. As provas de sucesso ou fracasso são do cliente, daí.


Statue reading - tumblr

Enquanto você encarar a leitura dos livros como algo tediante, chato, cansativo, difícil ou mesmo dispensável, lhe peço: não se aproxime do tarô. Pelo menos por ora. Há bastante a se fazer por esses mares virtuais. Só lembre que para falar com propriedade você precisará da leitura. Certo refinamento é preciso. Mas antes o letramento simbólico, por favor.


Né?

E esse é só um começo sobre uma série de reflexões sobre o poder da leitura - a primeira e eterna premissa para toda e qualquer resposta que você deseja obter por meio das cartas. O gozo da analogia. Até porque o oráculo não tolera o leitor perverso, sedento de um poder tal sobre a narrativa que se tece a cada lâmina virada, mas que no fundo nunca pensa no mecanismo dos signos. Insignificante. Esse sempre cai na breguice. Naquele esquisoterismo que paga de fino. Sai um patchwork de auto-ajuda infalível e logo desaparece, thank Gods. Quem não se rende à palavra não se liberta na imagem.

Tarô, ou tarot, ou tarocchi, é uma biblioteca que é um labirinto de espelhos que é infinito. Em possibilidades e em significados. A educação pelos olhos é que configura o homo ludens. Apreensão, interpretação e reflexão compondo um equilátero, talvez. Fiquemos então com essa ideia: a da Mãe dos Livros, a soberana das páginas. Paredes projetadas de dentro pra fora.


Jean Noblet

Já volto com os patronos.
Boas leituras por aí,


L.

17 de setembro de 2011

TARÔ NA COZINHA

Tenho uma relação mais que afetiva e acadêmica com a Itália. É genealógica, espiritual. A stregoneria, o malocchio, os benandanti e as peregrinazioni daquela terra são mais que elementos culturais. São ingredientes que aprendi a pesquisar e a questionar com mais afinco a partir do contato que tive com Ludovica, no tempo em que morei na Úmbria. Mas também, de certo modo, sempre evitei falar. Uma postura bastante solitária, confesso, mas essencial para não perde il filo, a conexão primordial, digamos assim, com o meu reino ancestral. Até porque, chi cucina ha regole, misteri e segreti che non svelerà mai*. Ocorre o mesmo com as práticas do espírito.

O tarô, peça-chave do altar que carrego no peito, são os chamados tarocchi (se lê "tarôqui", assim como o meu sobrenome, Chioda, que equivale a "Quioda"). Esse termo em italiano ressoa mais forte quando pronunciado, percebe? Talvez sejam as raízes vibrando no alto dos montes do centro da bota, onde tudo começou. Pois então, são esses mesmos ingredientes - esses símbolos - compõem a távola das matronas, que empunham tal qual o Mago la pasta que inspira o divino no paladar dos mortais.

Morena Poltronieri, Stefano Biolcati e Antonella Melandri, três estudiosos da cozinha e dos tarocchi, criaram um verdadeiro livro de receitas arcanas. La Cucina dei Tarocchi é uma publicação apetitosa para quem aprecia um bom prato, um bom vinho, um bom livro e, obviamente, uma bela leitura de cartas.



Que tal um filé para honrar O Imperador?
Ou uma massa d'A Estrela, com direito a creme? Vão nove ovos e o suco de um limão, anotem.
A arte da cozinha é a arte mágica por excelência. É por entre as panelas que os deuses nos espreitam.

Va bene, lavoriamo. Enquanto tomo meu café reviro o maço
pensando em qual carta virá trazendo uma receita.

Qual o sabor e o aroma dos arcanos?
Bacio a tutti,


L.

Questo è per te, Ludo.
Non avevo trovato questo libro a Perugia, ma ora è qui con noi.

La nostra magia è propriamente la nostra magia, vero?
Andiamo sempre. Caminare è potere.
Un bacio sulla tua eternità.


* quem cozinha tem regras, mistérios e segredos que não se revelarão nunca.
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13 de setembro de 2011

ÁS DE COPAS




a formação dos desejos
ato de respeitar as escolhas do peito

coerência afetiva

se não amas tudo,
como podes sentir amor?

ser afetivamente coerente:
saber a cada gole do êxtase
o vinho da vida



Ace of Cups - Thoth Tarot
taroteca.multiply.com

10 de setembro de 2011

LEMOS MAL O MUNDO




Lemos mal o mundo
e logo dizemos que ele nos engana.

Quantas barricadas o pensamento
do homem ergue contra si próprio!

Se lanço minha própria sombra no caminho
é porque há uma lâmpada em mim
que ainda não se acendeu.




Rabindranath Tagore
.

8 de setembro de 2011

VIRTUDE XIV



A temperança é essa moderação pela qual permanecemos senhores de nossos prazeres, em vez de seus escravos. É o desfrutar livre, e que, por isso, desfruta melhor ainda, pois desfruta também sua própria liberdade. Que prazer é fumar, quando podemos prescindir de fumar! Beber, quando não somos prisioneiros do álcool! Fazer amor, quando não somos prisioneiros do desejo! Prazeres mais puros, porque mais livres. Mais alegres, porque mais bem controlados. Mais serenos, porque menos dependentes. É fácil? Claro que não. É possível? Nem sempre, sei do que estou falando, nem para qualquer um.É nisso que a temperança é uma virtude, isto é, uma excelência: ela é aquela cumeada, dizia Aristóteles, entre os dois abismos opostos da intemperança e da insensibilidade, entre a tristeza do desregrado e a do incapaz de gozar, entre o fastio do glutão e o do anoréxico.



A temperança pertence, pois, à arte de desfrutar; é um trabalho do desejo sobre si mesmo, do vivo sobre si mesmo. Ela não visa superar nossos limites, mas respeitá-los. Ela é uma regulação voluntária da pulsão de vida, uma afirmação sadia de nossos poder de existir, em especial do poder de nossa alma sobre os impulsos irracionais de nossos afetos ou de nossos apetites.


A temperança não é um sentimento, é um poder,
isto é, uma virtude.

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André Comte-Sponville | Petit Traité des Grandes Vertus.
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6 de setembro de 2011

O CAMINHO DA AUTOCONFIANÇA

Ontem a minha querida editora do Personare escreveu aos colunistas da Revista pedindo sugestões de artigos sobre autoconfiança. Fiquei pensando no meu instrumento de trabalho, nessa parte indivisível que me é o tarô e matutei sobre o tal conceito. Autoconfiança? De onde vem? Embaralhei os 78 arcanos e pedi, com toda a clareza possível, que o arcano MAIOR que a representa emergisse do leque. Veio O LOUCO, para o espanto de muitos e para o meu sorriso interno. Em dois tempos redigi o artigo e ele já está publicado AQUI. Depois, passeando pela minha biblioteca, me deparei com a Rachel Pollack no seu maravilhoso Tarot Wisdom - Spiritual Teachings and Deeper Meanings, editado pela Llewellyn. Nele ela propõe um rápido método de leitura especialmente baseado no famoso Arcano Sem Número, bem eficaz para elucidar os pontos em que ele surge em nosso caminho. Vamos jogar? Sugiro manter o arcano em questão acima, como se fosse a posição 0 do jogo. Embaralhe os 21 ou os 77 restantes. Ou então permita que o Louco esteja no maço para que ela possa surgir em alguma das posições e ressaltar o seu poder de reflexão. Você escolhe. Disponha os arcanos na ordem numérica [naturalmente] em coluna, de modo que a última casa seja o caminho, os pés do Louco: as dádivas que as andanças proporcionam.


1. Como tenho sido um Louco na minha vida?


2. Como é que isso me ajudou?


3. Como é que isso me machuca?


4. Em que área da minha vida eu preciso ser mais Louco?


5. Onde é que o Louco não me serve?


6. Onde é que eu posso encontrar o Louco fora de mim?


7. Que presentes ele me traz?


O tarô, enquanto extensão do tarólogo e do consulente, é também o próprio caminho caleidoscópico que ele propõe. Variado, polissêmico. Um verdadeiro RPG. E quem o ministra firmemente, creiam, é o Louco. Íntegro em sua sabedoria maltrapilha, fiel às suas capacidades. Lembrei de Joseph Campbell, sempre maravilhoso, que afirmava aos seus estudantes: Follow your bliss. Seguir a nossa bem-aventurança é o único caminho que, além de ininterrupto, nos leva aonde temos que chegar, de verdade.

Aproveitem esses presságios.
Eles são fantásticos para o próprio crescimento até chegarmos a mestres de nós mesmos.



Uma grande jornada,



L.



* o artigo na REVISTA PERSONARE
TAROT E O CAMINHO DA AUTOCONFIANÇA - Exercite sua capacidade de conseguir o que deseja com o arcano O Louco


* crédito das IMAGENS
The Fool - Morgan-Greer Tarot - www.taroteca.multiply.com
The Wanderer - The Wildwood Tarot - the wildwoodtarot.com

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4 de setembro de 2011

ARCANO TALISMÃ #1







Tem gente que ouve o meu nome

Gravado em rajada de vento


Porque furacão e ciclone


Me servem de cama e assento.









Paulo César Pinheiro | Atabaques, Violas e Bambus, Editora Record, 2000.
Cavaleiro de Espadas
| The Aleister Crowley Thoth Tarot, AGMüller, 1986.


Parte do projeto 'Tarô, Magia e Cultura Popular', em desenvolvimento.

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1 de setembro de 2011

5 ANOS



Já estamos em setembro. Assim que o mês virou tive um clic: nossa, o CAFÉ TAROT faz 5 anos. O tarô tem se desenvolvido cada vez mais e mostrado ao Brasil que veio pra ficar e ficar bem à vontade. Há 5 anos tenho visto de perto a evolução dos blogs e sites no país e no mundo. Tendo desde cedo a oportunidade de interagir com outros profissionais, sinto as mudanças na maneira como que o nosso instrumento de mundo é visto pelos outros profissionais do esoterismo e até mesmo pelos céticos, pelos lógicos, pelos medrosos. A aceitação tem sido maior. Já cabemos em certa normalidade, mas com muitas ressalvas, claro.

Eventos como o mais recente Fórum Nacional de Tarô e Simbologia têm servido como divisores de água no que diz respeito à conscientização das pessoas por verem profissionais e interessados se reunindo. E também à dos próprios tarólogos, fazendo-se entender que ler as cartas não é uma profissão menos válida que a de ler os astros, por exemplo. A cartomancia não é marginal. Um crítico de arte lê imagens. Nós lemos símbolos. Combinamos e visbumbramos o infinito que há na moldura da combinatória. Transformações são sempre necessárias e uma repaginação, sobretudo mental, sempre é bem-vinda. A ignorância criativa é um dos problemas principais desse meio. Vale evoluir, mas inovando. Experimentando. A postura é de diálogo, de troca. De acréscimo e respeito de saberes. Estamos bem. Vamos bem.

E o CAFÉTAROT vai crescer ainda mais. Em breve cursos, palestras, atendimentos e encontros presenciais e virtuais serão divulgados. Hoje, mais que um blog, o CAFÉTAROT é uma marca. Desde 2007 fotografo canecas e baralhos sobre a mesa, unindo esses prazeres em total harmonia. Parece que estimula a leitura, o aprofundamento. Por isso é que é natural evoluir, a
final são cinco anos caminhando, sendo dez de envolvimento e dedicação aos arcanos.

Cada vez que subo num palco ou pego um microfone para falar em nome do tarô, ainda sinto o nervosismo, o "esqueci tudo" e o receio de não ser tão claro e direto como as cartas são pra mim. É que sei do quanto ainda tenho a caminhar.


Agradeço a todos os tarólogos, consulentes, amigos e curiosos que desde sempre prestigiam a evolução do meu trabalho. Registro aqui a minha felicidade por contribuir direta e indiretamente para o futuro cada vez mais promissor do tarô no Brasil.

Divido sempre com vocês
o êxtase dessa festa aqui em mim.




Ergamos as xícaras!
Muito obrigado.


L.



16 de agosto de 2011

DO DEMÔNIO



O Diabo é uma das figuras mais interessantes de todo baralho de Tarô. Uma genial criação católica e um sucesso de vendas, de público, de culpas. Celebridade tão bem consolidada que se mantém prostrada sobre um pedestal ornamentado de crânios, sangue, fogo e perfume. Ostentação. Raízes na terra dos homens, essa coisa que não é homem e nem mulher, mas é mulher e homem. Detalhes, importantes detalhes. A casa dele.

Os arcanos, enquanto números de um festival folclórico absolutamente vivo no âmago da humanidade, servem aos mais atentos leitores de mundo. Esse que agora desfila é um dos pilares do imaginário: vem pomposo, todo trabalhado num mosaico de animais peçonhentos, fogos e venenos. A carta XV é um exercício de monstruosidade. É ela o portal para os pais que assassinam os filhos, os filhos que destroem os pais e os bichos de estimação, os espectros que não descansarão antes de corroer a família dos vivos e também aqueles profanam a própria carne de modo bruto e consciente. Tortura é elogio. Freak show ininterrupto.


O demônio de Jacques Vieville, de 1650, desfilando seus maus modos e perversidades. Le Diable, de Etteilla, cuja concepção encabeça Baphomet no centro dos destinos

Só se engana pelo Diabo quem quer. Ou quem o nega. O próprio medo é como uma corrente que une a ele, perfurando a carne e a alma. Presenças estranhas na calada da noite não são gratuitas. Frente a tantas teorias sobre o seu papel, ele ri. Louca e estranhamente. De si e dos homens que um dia invejou. Mas agora é um dos soberanos entre eles. Na terra e no mar dos pesadelos, sua santidade faz miséria. Terrores noturnos. O tarólogo que se prostra diante de sua imagem o trata como um arcano a mais, mesmo sabendo que ali é a fossa dos complexos, dos arrependimentos, das ganâncias e do pior de cada um. Arcano que confunde. Pai do bizarro. A mão que chacoalha o berço dos pecados é negra. E as unhas são pontudas.

Detalhe de The Devil | Swiss IJJ Tarot

A blasfêmia é uma especialidade. Os detalhes lhe servem sempre. Segue no céu o ritual do nojo, porque voa. Asas e tocha. Seria mesmo uma tocha o que carrega na mão esquerda? O fogo que pode incendiar a Terra. Ou ainda, por ser o pai da mentira, nos faz ver que esse o tal objeto é a lâmina de uma espada, manuseada sem nenhum cuidado. Cócegas na carne demoníaca. Voltemos os olhos, com cuidado, aos registros visuais históricos. São inúmeras as diferentes manifestações do mal. Gastrocéfalo, na maioria delas. Um rosto no abdome indica o deslocamento da sede intelectual (cabeça), agora posta ao serviço dos apetites mais baixos. Uma homenagem à Gula — uma de suas virtudes favoritas.
O gastrocéfalo na antiguidade do tarô e na recriação de Camoin e Jodorowsky

Também se vê que ele vê. Demais, por ser o mercador do excesso. Olhos nos joelhos para enxergar em todos os níveis da existência. A língua exposta é a reação rebelde às boas normas. Blá, blá, blá. Dane-se. Diálogos possíveis e recheados de palavrões com as pranchas de Mitelli. As orgias simbólicas é que trazem sentido ao Tarô.

Le Diable de Jean Dodal entre CVRIOSITA e ARPIA de Giuseppe Maria Mitelli

A curiosidade é um mal porque faz procriar a fofoca, a inveja, a pichação da tela harmônica que mantém as melhores famílias, as boas relações e os produtivos negócios. Deturpa tudo, não deixa nada como antes. As alegorias do grande bolonhês, acima, falam por si. Convergências tão altas que fazem doer os olhos. E os ouvidos, percebe?

La serpente magique de Etteilla lembra que é importante escolher bem para escolher sempre. Ele é o desdobramento do sexto arcano, Os Amantes. Depois do “sim”, a prisão pode ser pra sempre. A estrutura é triangular. E o que os olhos veem o coração pode sentir, de algum modo. Curioso é que ele pode mesmo assumir o papel do Anjo do Amor. Quando laços afetivos são regados com ciúmes, cobranças e carências exacerbadas, o fim é iminente. O ódio tomar lugar no culto. Ou não. Quando pensa na loucura, filha predileta às normalidades do Anjo de Trevas, percebe-se tardiamente que o caos reina. Exemplo já clássico das artimanhas desse evento divino é ANTICRISTO, do perturbado Lars Von Trier. Lição demoníaca obrigatória.

O aprisionamento afetivo iminente na lamina The Lovers, de Pamela Colman Smith. Cartaz de ANTICRISTO, de Lars Von Trier (2010)

Maldito és entre nós, profanador de almas. Perditorvn Raptor. Os altos e baixos apetites não poupam ninguém. Posterior ao sabbat é o ato de devorar. Agente mágico empregado para o mal por uma vontade perversa, segundo os passos de Eliphas Levi. Feitos os pedidos, paga-se o que deve. Caso contrário, o Contrário o caça. Encarna o sequestrador das almas [perdidas]. Uma brisa mitológica: provavelmente Plutão, deus do submundo, emerge de carruagem e deixan rastros de chamas após ter sequestrar uma certa jovem. Cena propícia a terrores noturnos.

14, Perditorvn Raptor – Rouen Tarot, século XVI

Falando na estrutura do ambiente, tem-se o submundo, a masmorra inacessível que Pamela Smith pintou bem abaixo dos lençóis freáticos d’A Temperança. Na verdade – se é que há alguma aqui – a fotografia primordial do arcano enquadra o próprio ritual em homenagem à abominável criatura. Ali é hotpoint dos pecadores e desesperados. A sombra fala através do espelho e o cenário é digno de Gustave Doré ao imaginar a obra prima de Dante Alighieri.

New Vision Tarot - Lo Scarabeo

Tão confundido, tão mal dignificado, tão desprezado. Mestre dos disfarces, o Diabo acaba sujando o nome dos deuses que lhe deram os protótipos de imagem e conceito. Pobre Pã. Pobres faunos. Mas eles servem, ricos, às aproximações simbólicas tão caras à diversidade de temas e tarôs espalhados por aí. As palavras-chaves são quase sempre as mesmas: obstáculos, condicionamentos, perda da liberdade, obsessão, materialismo. E também, graças a Deus(?), potencial criativo, humor. Muito humor, negro ou não. Sedução não falta na passagem da literatura pagã ao inferno dos clássicos depois de Cristo.


Famiglia di satiri che compie un sacrificio a Pan, de Bernardo Luini
Pinacoteca di Brera, Milão


Pã é um dos favoritos. Nessa pintura de Barnardino Luini se vê a mais que nítida associação dos escravos acorrentados com os sátiros. Essas aproximações arcanas só são produtivas quando se entende a natureza do trunfo, que é vária. Disforme. Polissêmica. Sempre nos chamando e pressupondo amor e dedicação. Exatamente como os seus outros 77 membros, tão queridos. Tão subjetivos. 


Baphomet, sua mais popular faceta, embebida em ocultismos e desinformações, se alimenta de cultura pop


Sexo, drogas e cartomancia. O underground é válido. E é válido falar da voz da Cabra Mística e de suas poses sombrias, do medo que só ele causa e só ele cura, da obsessão e da competitividade e também da criatividade que tonifica os perversos. A fonte de sangue e vísceras da qual bebe o Diabo é inesgotável, como as suas formas ao longo da escrita e da imagem, sobre ele e suas danças. A leitura do tarô informa e recruta os sentidos. E no caso dessa lâmina, tão afiada, a transformação pode ser inimaginável. É a possessão possível. E o inferno é tão simbólico e animador que continuamos dançando à luz dessas imagens e desses detalhes. Nós, os seus feiticeiros – todos acorrentados à poesia escarrada no corpo, ofuscados pelo brilho da Estrela da Manhã.

























O inferno somos nós,
sempre.


Leo