Mostrando postagens com marcador Religião. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Religião. Mostrar todas as postagens

7 de agosto de 2021

O CINCO DE OUROS



A fome é que é obscena.

José Saramago



Eu nunca me demorei no Cinco de Ouros. Nos idos de 2000, quando comecei meus estudos oraculares, este era o arcano em que pensava compreender o suficiente essa cena absoluta de penúria — a maior, a mais triste e dura fonte de pobreza de todo o Tarot. Ledo engano meu. E sempre soube desse engano, atraído pela imagem criada por Pamela Colman Smith a pedido de A. E. Waite, que prenuncia “problemas materiais, acima de tudo”. Uma imagem que merecia — e sempre merece — um estudo debruçado. 


Cinco de Ouros não só enquadra a arquitetura da miséria, com suas diversas particularidades e suas devidas profundezas, como ensina a ver a realidade com a devida atenção e a necessária postura firme diante dessa verdadeira obscenidade. Cinco (mil gatilhos) de Ouros.





FIVE OF PENTACLES 
Smith-Waite Tarot 
U.S. Games, 1971



Impossível não pensar, ao menos por cinco minutos, em Pamela Colman Smith erigindo o muro escuro de uma catedral como uma crítica à Igreja em relação aos mais necessitados. Se me volto ao Sola Busca, até aceito que Smith possa ter se baseado no Cinque di Denari deste que é um dos maços de Tarot mais enigmáticos e importantes da História para compor o seu Five of Pentacles.

 





I Tarocchi Sola Busca (Veneza, 1491) 
Pinacoteca di Brera


E se falo em catedral, penso em Fulcanelli. O lendário alquimista francês afirma que “a catedral é o refúgio hospitaleiro de todos os infortúnios”, onde os doentes imploravam a Deus o alívio dos seus sofrimentos, permanecendo nela até sua completa cura. Isso ocorria em Notre-Dame de Paris em que aflitos, convalescentes e debilitados eram recebidos por médicos na entrada da basílica, ao lado da pia de água benta, e várias noites. É, portanto, “o asilo inviolável das pessoas perseguidas e o sepulcro dos mortos ilustres", servindo a todos, sem olhar a quem. Além do paredão gelado de uma catedral, este pode ser o muro qualquer outro templo. Então penso em José Santa-Bárbara, um dos maiores leitores de Saramago e grande ilustrador d’O Memorial do Convento. E daqui em diante também posso ver, no Cinco de Ouros, Baltasar e Blimunda bem rentes ao santuário de Mafra.




Sete-Sóis e Sete-Luas 

José Santa-Bárbara, 2001



Os dois retirantes concebidos por Smith têm iconografia própria. Pouco importa, nesta altura da humanidade, a fonte exata em que ela bebeu para compor uma das cartas mais difíceis do Tarot. Dois mendigos são emblemáticos na história das artes gráficas, infelizmente. Na carta de Smith não vemos a entrada, apenas a ostentação colorida de um vitral que remete à farta saúde de uma instituição religiosa milenar. 


Dois andarilhos, pessoas visivelmente debilitadas, seguem seus destinos pela neve. Deram de cara com as portas fechadas, sumariamente impedidos de se abrigar no templo? Ou estariam quase chegando à entrada, alimentando esperanças a passos dolorosos, de serem recebidos na Casa de Deus? Seja como for, o drama estático — a cena pausada que a carta mostra — é que prevalece na teoria e na interpretação. O Cinco de Ouros abarca as mazelas do caminho sem floreios. 




Gravura de Cornelis Massijs (1538) . 
Acervo do British Museum



Não há flores na rua da amargura. Não há perdão para quem se esforça na glamourização da pobreza com a tal da 'resiliência', palavra da moda dentre os mais ingênuos da onda holística e do coaching. É esperado que quem enfrenta o frio cortante da miséria se torne mais forte e resistente aos percalços, mas nunca é garantido. A vida adoece. O frio mata. E o Cinco de Ouros continua sendo um quilômetro infrutífero de uma terra vasta de oportunidades. A pé. Sem choro nem piedade. 


Uma das profundezas dessa carta se revela a partir da clara noção de que não temos noção clara a respeito do gênero dos dois caminhantes. Podem ser dois homens ou, como tem se mostrado frequente na maioria dos baralhos derivados do imaginário Smith-Waite, um casal heterossexual: a mulher, mais alta, e o homem, mais debilitado, valendo-se das muletas e ostentando o sino, sinal de que os leprosos, distanciados por todos, se aproximam do vilarejo. 





Gravura de Adriaen Matham & Adriaen van de Venne (1630-1650). 

Acervo do British Museum



Com este instrumento, tão discreto que passa silencioso pelos cartomantes desatentos, se vê que a Igreja torce o seu nariz de ouro para ajudar a quem realmente precisa. Ainda assim, Chevalier e Gheerbrant alegam, em seu utilíssimo Dicionário de Símbolos, que “o sino evoca a posição de tudo o que está suspenso entre o Céu e a terra, e, por isso mesmo, estabelece uma comunicação entre os dois. Mas também tem o poder de entrar em relação com o mundo subterrâneo”. O subterrâneo liga-se ao que está longe das vistas embora bem embaixo do nariz da sociedade: o dito submundo dos viadutos, as ruas fechadas pelas drogas, os doentes terrenos descampados e os becos dos viciados em que virtude alguma parece ter vez. 





People scrambling to get away from a leper ringing a bell 
Pintura de Richard Tennant Cooper (1912).
Wellcome Collection




Com essa deixa vamos nos aprofundando na paisagem impossível do Cinco de Ouros, que fala claramente a língua dos homens e clama pelo socorro dos anjos. Outra interpretação, também com frequência trazida ao Tarot, é a de que se trata de uma mãe com seu filho. A partir do baralho de Bill Greer e Lloyd Morgan, uma das imagens católicas mais poderosas é aventada neste arcano:






Five of Pentacles - Morgan-Greer Tarot (U.S. Games, 1979)

La Pietà - Michelangelo (Vaticano, 1499)



Só quem vive numa bolha nunca viu uma mãe pedindo esmola com um filho a tiracolo. E só quem vive mesmo numa bolha, bem turva de tanto positivismo tóxico, não vê que este arcano dá voz aos fracos e oprimidos, aos abandonados e apagados pela sociedade. A nevasca torna invisível que passa. Nos baralhos em que o Cinco de Ouros centraliza a mater dolorosa, o protagonista deixa de ser o infortúnio na nevasca para se tornar o calor espiritual, que reconforta aqueles que sofrem dificuldades físicas e financeiras. Não à toa, o triângulo de Michelangelo se repete com os vitrais — mãe, filho e Espírito Santo, que roga por nós. 






O vitral da imagem Smith-Waite é um enigma que causaria grande apetite nos decodificadores de imagens se não fosse tão óbvia em seus segredos. Trata-se de uma árvore florida, frondosa e forte o bastante para representar o espírito sobre a matéria: quatro tentáculos abaixo — demarcando as firmes estruturas materiais, morais e sociais  — e um acima, o espírito, ostentado como se fosse Deus acima de todos. Balela eclesiástica, argumento plausível para a santa mamata dos vendilhões que gozam do lado de dentro dessa janela tão próspera. 






Em outras versões, como a de Frieda Harris, considera-se o pentáculo invertido sempre como uma “um símbolo de alguma tendência sinistra”, segundo o próprio Crowley — “o triunfo da Matéria sobre o Espírito”, que gera séria instabilidade nas fundações de tudo o que é palpável. O mesmo ocorre com o Cinco de Espadas com as suásticas, devido aos ataques nazistas a Londres em novembro de 1939, mesmo período em que Lady Harris concluía, numa capital literalmente assombrada pela guerra, os Arcanos Menores. Coincidência ou não, os bombardeios de Hitler também tonificam a desgraça anunciada do Cinco de Ouros: nas palavras do próprio Crowley, “seu efeito é aquele de um terremoto”, com os mesmos estragos possíveis. 





Harris-Crowley Thoth Tarot

Five of Swords — Five of Disks

AGMuller, 1986



Não entremos no mérito de muitas discussões a respeito do cinco, o profano número sagrado que sempre extrapola os espaços possíveis. Basta dizer que a vida é o sopro passando pelos dedos de uma só mão: 1. concepção, 2. nascimento, 3. crescimento, 4. maturidade e 5. morte. Nem falemos "amém" a Crowley, porque é preciso fazer justiça às suas úteis interpretações e aplicações invertidas. Mesmo tanto e tão associado a práticas de magia negra, na religião Wicca, por exemplo, o pentagrama com a ponta superior posicionada para baixo é um símbolo do Segundo Grau (o último e o mais alto é o Terceiro), assegurando que o iniciado segue em processo de desenvolvimento. Cinco é o número do espírito e da matéria combinados no corpo e no universo — vide o Homem Vitruviano de da Vinci —, mas nos Arcanos Menores ele também rege os conflitos naturais da própria interação entre as forças e as formas. Em Paus, Copas, Espadas e aqui, o Cinco é número e arcano de transformações reais e radicais. E continuamos bem longe de qualquer sensacionalismo satanista e suas teorias hediondas. Demoníaca é a miséria, a desigualdade e a política do abandono. 




FIVE OF COINS
The Alchemical Tarot (2015) & Tarot of the Sevenfold Mystery (2012)
Robert M. Place - Hermes Publications



Há teóricos que preconizam o Cinco de Ouros como o ponto crítico de um relacionamento afetivo, como se um período de provação chegasse aos compromissados. Não à toa, os atributos mais frequentes em diversos manuais franceses e italianos prenunciam o surgimento de uma ou um amante, abalando as estruturas de um casamento — nada mais catastrófico para a moral e os bons costumes, já que “não separa o homem o que Deus uniu”. Mas se pensarmos em sombras e luzes, a contraparte tão luminosa estaria em outro naipe, bem no arcano das alianças firmadas e do brinde tão celebrado: o Dois de Copas seria o mar de rosas e o Cinco de Ouros o seu contrário. Acaba sendo obrigatória, de tão óbvia, a associação dessa dupla com os versos mais célebres do Rito do Matrimônio católico, proferidos no instante da União das Mãos e do Consentimento: "prometo estar contigo na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-te, respeitando-te e sendo-te fiel em todos os dias de minha vida, até que a morte nos separe."




Na alegria e na tristeza

Na saúde e na doença

Na riqueza e na pobreza



Não sendo (nunca) homogênea a massa de significados para esta carta em toda a literatura tarológica, aumenta a sua brecha interpretativa. De amor e amantes em Etteilla e em Papus a perdas e dificuldades, nos dias de hoje, o Cinco de Ouros culmina em um arcano transitório em relação ao desamparo e ao desespero. Como se não houvesse, de acordo com o provérbio português, mal que dure para sempre. Talvez eu fique com a frase bíblica que Sofia di Vincenzo, em seu livro sobre o Sola Busca, aplica ao nosso arcano: “post tenebre espero lucem”. Quem, vendo e vivendo a treva, não espera a luz? Eu espero calor a esses dois em dificuldade escancarada, no sentido térmico e humano. Porque o Cinco de Ouros é uma carta difícil, pesada. Como bem é o inverno numa cidade de pedra. 






São Paulo, julho de 2021. A temperatura chega a menos de 5ºC. Várias igrejas passam a alojar, nessas noites de frio que mata, diversos moradores de rua. Grande exemplo é o incansável padre Júlio Lancelotti, à frente da comissão de acolhimento aos desabrigados, que já deixou de ser um simples pároco da Mooca para se tornar um dos mais influentes religiosos do país nas redes sociais. Seu ofício cativa os que se importam e choca demagogos, hipócritas e falsos cristãos. Mas o que realmente deveria chocar — e infelizmente não choca, dado o Brasil de hoje —  são os comentários em suas postagens: “aquele cara de jaqueta e essa mulher de cabelo tingido?! Isso não é gente de rua nem aqui nem na China!”, como se as pessoas em situação de rua tivesse a obrigação de serem irreconhecíveis enquanto seres humanos, como bem manda o imaginário de certas ditas pessoas de bem. 



Instagram: @padrejulio.lancellotti



Não. O próprio Tarot ilustrado por Pamela Colman Smith assegura esta verdade, com seus rostos aleatórios que podem, certamente, ser os rostos de quaisquer outros personagens dos outros arcanos. Eu vejo as feições da mendiga na madame do Nove de Ouros e nas águas claras da Rainha de Copas. Eu vejo o mendigo de muletas na firmeza do Nove de Paus e, sobretudo, no rosto soberano do Rei de Espadas. Sendo assim, fica o óbvio: quem está agora no Cinco de Ouros pode ter estado e poderá estar em qualquer outra posição de qualquer outro arcano. Quem julga pessoas — eu disse “pessoas” — em situações deploráveis não ajuda em nada. Eu disse “nada”. Quem critica aqueles que ajudam de verdade perpetua as mazelas. As próprias e as dos outros.





O Cinco de Ouros tem sido um arcano invisível. Ele revela a nossa vulnerabilidade enquanto seres humanos, falhos e propensos a toda sorte de quedas. Pouco se fala dele a não ser em releituras que se distanciam de toda a tradição simbólica. Há mil casos e exemplos. Tal como são muitas pessoas em situação de extrema pobreza; tal e qual a pessoa que perde tudo e tem questionados os seus valores. Eu nunca havia me debruçado sobre o Cinco de Ouros e o motivo, agora vejo, é porque sempre considerei inadmissível normalizar pessoas em miséria extrema, em perpétuo risco de morte, em sofrimento por questões de primeira, segunda e terceira necessidades. É comum fechar os olhos a essas questões, mas não é humano perpetuá-las. O Cinco de Ouros é retrato (obsceno) universal do descaso, do nojo e da omissão dos grandes.


E continua em mente a cena arquitetada pela genial Pamela C. Smith. Ela é a base da adversidade, atributo já clássico deste arcano. O Cinco de Ouros não só contrasta a riqueza do templo com a pobreza de fora como escancara a imponência do que se cria — o templo — com a insignificância de quem criou — os dois andantes excluídos, os dois obreiros mal remunerados pelo Estado? —, mostrando que é mais fácil perceber o que podemos fazer do que quem podemos nos tornar. Glória da indiferença. Essa perspectiva, na atual conjuntura, dá margem a uma possibilidade necessária: essa que tida como uma das piores carta do Tarot, é uma carta de resistência. Ela ensina a dizer com mais frequência uma das palavras que preferidas de Saramago: “não”, convencido de que é preciso dizê-la mais e mais, “mesmo que seja uma voz pregando no deserto”. Ou no frio cortante. 




FIVE OF PENTACLES
Before Tarot - Eon & Simona Rossi
Lo Scarabeo, 2018 



Porque é importante dizer não ao acúmulo desenfreado de riquezas por umas poucas pessoas enquanto outras milhões passam fome, por exemplo. Porque é importante, agora vejo, depois de dois dias imerso nas analogias possíveis, notar o quanto é necessário, a quem o observa, sorteia e interpreta essa carta, não se esquecer jamais dos seus privilégios. E ajudar sempre — da forma como é possível e pelo tempo que for necessário — a diminuir a dor de animais e pessoas em condições cruéis. Esta é uma lâmina que machuca. Este é um arcano que ensina. 


O Cinco de Ouros clama pela noção sincera de que há dores piores que as suas. 

O Cinco de Ouros exige olhos e mãos para quem está lá fora, sem saber se haverá amanhã.

O Cinco de Ouros pede para se colocar no lugar de quem tem fome, frio e sede.

O Cinco de Ouros implora por justiça e misericórdia a quem desiste de si.

O Cinco de Ouros mede e revela a sua, a minha e a nossa humanidade. 







 





















P.S. Por mais cristão que pareça este ensaio (e mesmo não o sendo o seu autor), nada impede de abraçar a causa de um padre e de ajudar a quem precisa. Pelo contrário. Pouco interessa a religião; o que importa é ajudar. Quem critica e maldiz as atitudes de uma paróquia, uma entidade social ou um grupo beneficente alegando ideologias políticas e impondo convicções religiosas, também precisa de muita ajuda. Aliás, tem algo muito estranho e muito errado em quem lê Tarô e estuda Esoterismo, por exemplo, e não se volta a questões sempre urgentes como pessoas e animais em situação de fome, frio e maus tratos. Quem trabalha a favor da espiritualidade trabalha a favor da ajuda, da justiça e da vida. É uma missão. Assim como é interpretar os símbolos, esses seres — vivos e bem visíveis — ao nosso redor.





BREVE BIBLIOGRAFIA DE APOIO


CHANG, T. Susan & MELEEN, M. M. Tarot Deciphered. Llewellyn, 2021.

CROWLEY, Aleister. The Book of Thoth. Lancer Books, 1969.

DI VINCENZO, Sofia. Sola Busca Tarot. U.S. Games, 1998.

FARRAR, Janet & Stewart. A Bíblia das Bruxas. Alfabeto, 2017.

FULCANELLI. O Mistério das Catedrais. Edições 70, 1986.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. José Olympio, 2020.

LOUIS, Anthony. O Livro Completo do Tarô. Pensamento, 2020.

SARAMAGO, José. Memorial do Convento. Companhia das Letras, 2019.

WAITE, Arthur Edward. The Key to the Tarot. Rider Books, 1999.


23 de abril de 2012

SALVE, JORGE!






 O dragão nunca é mais forte que o Cavaleiro.
Mas nem todos sabem que são Cavaleiros.




Salve, Jorge!




IMAGENS

. Matthäus Zasinger, circa 1500.
. Kat Black, U.S. Games, 2003.

10 de julho de 2009

11 de junho de 2007

Habemus Arcanum

OS PODERES DO PAPA




Impossível analisar uma carta de tarô se não houver uma verdadeira jornada por entre seus símbolos. E não basta apenas saber suas palavras-chave e contentar-se com as verdades dos inúmeros livros e manuais, mas sim pesquisar, aprender a observar os arcanos e a anotar impressões, como um verdadeiro leigo, como um eterno estudante. Enquanto instrumento de trabalho e obra de arte, o tarô conta com inúmeras associações, sejam de natureza humana e social, sejam de personificação dos conceitos cósmicos e religiosos, por exemplo. Valendo-se da figura do Papa Bento XVI, neste momento, seu representante no tarô fala mais alto em analogia com as questões cotidianas – especialidade dos que sabem ver o tarô com os olhos livres, sem precisar fugir do seu sistema.

O quinto arcano maior, polêmico desde os primórdios pelos conflitos religiosos e alterações simbólicas que sofria, hoje ainda está caracterizado em roupagem cristã, já que vinculado à iconografia medieval, quando as cartas eram desenhadas e influenciadas pela estrutura social e religiosa.

Depois da Reforma, Roma começa a desvincular seus símbolos sagrados antes estampados nas cartas de jogos populares, algo que poderia macular a imagem da igreja. Seria imprudente haver uma gravura do Papa em maços de cartas para jogadores de tavernas. Em 1725, a Igreja ordenou para que os impressores removessem o Papa e a Papisa, por serem figuras de poder e heresia, respectivamente.


O Papa dá lugar a outras figuras, como Baco e um Imperador neste tarô belga
e no Minchiate Etruria, ambos do século XVIII – www.tarothermit.com/pope.htm

O papado surge a partir das ruínas do Império Romano desintegrado em 746, herdando dele o autoritarismo, a língua latina e a independência dos monarcas. Levando em conta as duas expressões correntes na sociedade medieval (poder espiritual e poder temporal), percebe-se que nem sempre essas forças se mantinham separadas, pois muitas vezes se confundiam e conflitavam exaustivamente. Quando os monarcas converteram-se ao Cristianismo, a Igreja Católica tornou-se uma organização formal e de caráter sagrado.

Houve, então, uma pretensão por parte dos bispos em transformar sua autoridade religiosa em autoridade política universal. Quiseram triunfar sobre os reis, imperadores e senhores feudais, assim como estes reinavam sobre seus fiéis. Daí o conflito entre o poder eclesiástico – gerado como força supranacional – e o poder monárquico, que concedia à Igreja a ordem espiritual, além da política que perdura até hoje.

Etimologicamente, o “papa” italiano vem do latim “pater”, utilizada até o ano 500 para caracterizar todos os bispos ocidentais. Aos poucos esse tratamento ficou restrito aos bispos de Roma – capital do império desfeito e sede da Igreja. O poder do papa teve grande impulso a partir de dois fatos: por um lado, o declínio do Império Bizantino quando Roma se viu livre das amarras que a prendiam ao Império Romano do Oriente, passando a agir como soberano. Por outro, recebeu forte apoio dos francos, dando à Igreja um duplo papel: além de poder espiritual, ela passava também a deter o poder temporal sobre as regiões que lhe pertenciam.

Do período renascentista até os dias de hoje, não se questiona a idéia do Papa ser o representante humano de Deus na Terra, a mais alta autoridade mundana em estreita ligação mística. No tarô, ele ocupava o maior posto da sociedade e da religião predominante, assumindo um lugar natural e convencional entre os demais trunfos.

Para Waite, é o “caminho objetivo das igrejas e dogmas”, o summa totius theologiae. Como em todos os baralhos, o Papa sofreu inúmeras deformações em sua estrutura, que acabaram afastando-o do conceito medievo de bispo, cardeal e padre para conceitos modernos de guru, mestre e místico. Claro que todos carregam o poder do contato divino, mas várias concepções modernas deixam de lado detalhes importantes que só são percebidos quando se analisa a carta com atenção, e não se baseando apenas em manuais ou no contexto de um determinado baralho. As novas concepções ignoram vários atributos, entre eles os de instituição, bênção, fé, religiosidade e obediência – características do bom e velho Sacerdote desde quando o tarô é tarô.


O símbolo do poder papal no arcano do Da Vinci Tarot, de Atanassov & Ghiuselev e na colagem primorosa de Kat Black (www.goldentarot.com), concebida a partir da pintura de São Luís, bispo de Toulose, por Simone Martini, 1318.

Outro símbolo além da mitra, do báculo, das chaves e da luva papal é o Anel do Pescador, ausente na maioria dos baralhos. Desde sua origem, a jóia tem essencialmente a função de selo. É provável que seu uso entre os bispos antigos fosse motivado, além das razões simbólicas de união e casamento com a divindade, pela funcionalidade e autenticação de seus atos. Ainda no período feudal, tornou-se também a marca do poder temporal dos governantes.

O anel indica elo, um vínculo. Vale como signo de aliança, voto e comunidade religiosa. Um destino compromissado, até. Ele une e isola ao mesmo tempo, sendo irreversível a postura que o cardeal assume diante de Deus – sua própria vocação, o fato de tornar-se esposo da Igreja – e ainda o símbolo do mistério nupcial de Cristo.



Tu és Pedro, e sobre essa pedra edificarei minha igreja”. Até o início do pontificado de Bento XVI, o Anel do Pescador tem sido a insígnia referente ao primeiro homem que, segundo a tradição cristã, foi a “pedra” fundamental na fundação da Igreja – Simão, a priori, era um humilde pescador da Galiléia e discípulo de Cristo.

A jóia sofreu várias transformações até ser constituída de ouro puro e trazer a imagem de São Pedro sobre uma barca, lançando sua rede. Mantém-se como testemunho da origem e do significado do poder papal, pois quem o usa é apenas o sucessor do apóstolo Pedro. Atualmente, é o símbolo mais forte na mão de Joseph Ratzinger.

Aliás, falando no atual pontífice, sua autoridade e importância pode ser analisada sob o prisma temporal e espiritual, combinados na figura de chefe de Estado do Vaticano e claro, na de sucessor de João Paulo II. Pra qual lado da balança pende sua influência?

O cristianismo reaprendeu a lição da modéstia durante os últimos suspiros de Karol Wojtyla. Passou a conviver em harmonia com outras formas de sentimento religioso e se preparou para uma nova fase de sua história.
Apoiada na solidariedade e não no autoritarismo, buscou estimular o diálogo ecumênico e inter-religioso, mesmo que timidamente. Houve, porém, adversários a essas transformações dentro do próprio Vaticano – o ainda cardeal Ratzinger, afirmando convictamente que as outras igrejas, assim como todas as demais religiões, não têm acesso legítimo ao mundo divino.

Tal declaração denota o caráter individualista e monopolizado do antigo bispado. Pra quem pensava que o novo papa romperia com as velhas tradições e conceitos morais do catolicismo, enganou-se. Ele já afirmou com total propriedade que a religião católica é melhor que as outras e só se pode atingir a verdade por ela, que deve seguir intacta quanto aos valores cristãos.

O que importa é não perder sua identidade, sempre fiel ao que prega, mesmo com menos praticantes nas missas. Bento XVI ainda ressalta a oposição clara e sucinta aos modismos e novidades perante a Igreja. Nítida analogia com os atributos políticos do Imperador, agora ainda mais sólidos. É o árbitro de todas as questões morais e inquisitoriais, claro. Atenhamo-nos às cartas, então:



Historicamente, a mescla de atributos entre o dois arcanos é nítida. O papa é uma poderosa figura, tanto religiosa quanto simbolicamente. É a face humana de Deus, aquele que torna acessível o mundo transcendental por meio da crença, da moral e da política de ordem. Antes de um líder é um servo, já que separados o plano da matéria e o do espírito, atua como ponte entre o homem e o divino, dando origem ao termo “pontífice”. Intermedeia, ensina e mantém a palavra do seu Evangelho.

O Imperador lidera no plano material como autoridade direta. Ele cuida das terras vastas do horizonte ao seu redor enquanto o Hierofante (de hieros, sagrado e phantes, ensinar) comunica-se com seus fiéis. Aqui se encaixa a idéia de que a massa de católicos está distribuída por todos os lados, enquanto Bento XVI preza por uma Igreja centralizada, dando de ombros para o afastamento de católicos diante de suas posições dogmáticas. Vendo no mundo uma ameaça iminente à religião, tende a reforçar a identidade eclesiástica, mesmo que a conseqüência seja o distanciamento de boa parte do rebanho. Qualidade, e não mais a quantidade.

Espero, neste curto reinado, ser um homem de paz”, pondera Ratzinger aos 78 anos, logo após sentar-se no trono. Já enfrentou um derrame hemorrágico na década de 90 e outros problemas de saúde em 2004. Sendo considerado um papa de transição – e o mais velho eleito até então –, o mundo provavelmente assistirá à sua decadência em alguma consonância com o arcano 13, A Morte. Ainda nos traços de Pamela Smith, vemos o religioso aos pés da Ceifadora — uma possível renúncia ao posto ou o fatídico fim do corpo terreno.




Enquanto isso, Bento XVI se depara com três objetivos importantes que, segundo o teólogo Leonardo Boff, farão toda a diferença durante seu papado:

Assumir o Vaticano com toda a agenda, recolocando a Igreja dentro do mundo moderno e dentro do mundo dos pobres;

Dialogar com os templos locais e torná-los mais descentralizados;

Retomar o diálogo entre a Igreja e as outras religiões para juntas ouvirem o drama que aflige a humanidade – o drama da fome, da miséria e da guerra.

Outra "novidade" trazida pelo sacerdote é a do papel do demônio no mundo, chegando a afirmar que o enviado do Diabo estará sob a máscara de um pacifista ou ecologista. Possivelmente herdado de João Paulo II, o conceito de oposição entre o Espírito Santo e o espírito mundano e diabólico tem papel aprimorado na teologia agostiniana de Ratzinger – uma leitura negativa da cultura e dos interesses que desencadeiam conflitos entre as duas cidades, a de Deus e a do Diabo.



Afinal, qual o sentimento que o povo teve por Bento XVI no início? Aversão, medo e desesperança. Enquanto o quinto arcano abençoa, o Diabo aprisiona. Essa seria a postura ética que vem sendo aplicada por Ratzinger, a de que o homem nasce mau e é imperfeito estruturalmente. Apenas a religião e o temor a Deus são necessários para uma vida digna. Muitos discordam e preferem ver o jogo de outra forma: o próprio Papa é o Diabo disfarçado.
Quando mal dignificado, pode sugerir excomunhão ou até pacto com o mal. Argumentos não faltam, basta notar as semelhanças entre as duas imagens.


Aquele que dá a bênção é o mesmo que amaldiçoa, como se pode ver pela sombra projetada na forma do bode.
Gravura de Eliphas Levi, no seu "Dogma e Ritual de Alta Magia".


O tarô sofre de polissemia aguda, mas é sempre bom parar e ver o que está literalmente estampado nas lâminas. Analogias com o cotidiano dependem de atenção e pesquisa. Muitas das invenções surrealistas e pessoais do tarô não preservam os atributos tradicionais do Papa, e esse é o grande perigo. Não é necessário ser católico para manter-se a figura do sacerdote cristão, apenas fazer valer sua moral de ordem, de contrato, de vocação, de fé e de rigidez mental, como se sente no atual representante do catolicismo.
Crenças a parte, o Papa é um símbolo vivo. Qual a razão de perder esses valores para uma nova roupagem, seja essa mitológica ou talvez mais de acordo com o famigerado movimento da Nova Era? Tais mudanças não se reportam ao estado perceptivo da lâmina, mas à coerência muitas vezes utópica de querer “tirar o Hierofante do pedestal”, explícita em uma publicação americana. Particularmente, fico com o aprofundamento dos símbolos tradicionais que perduram há tantos séculos.


O contraste entre o simbolismo tradicional e uma nova concepção artística do quinto arcano.
(Eatpoo Tarot Card Project, www.tarot.eatpoo.com)


Que a imagem fale por si enquanto o conceito se mantenha fiel. As versões antigas do quinto arcano em contraste com as modernas continuam gerando opiniões e sentimentos ambivalentes, assim como a sociedade vem nutrindo por Joseph Ratzinger. A imagem da lâmina não é o próprio Papa do Vaticano, mas Bento XVI encarna o Papa do tarô. Essa associação, baseada em símbolos semelhantes de poder, denota capacidade perceptiva e compreensão da realidade que o tarô sugere.

Nada, portanto, passa batido se a alma for grande e os olhos livres.
Está tudo nas cartas. Alguém duvida disso?
Então é heresia.


Amém,

Leo



________________________________________

Imagens:
http://www.taroteca.multiply.com/
http://www.google.com.br/