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26 de julho de 2015

PRUDÊNCIA



'Prudentia', observa Cícero, vem de 'providere', que significa tanto 'prever' como 'prover'. Virtude da duração, do futuro incerto, do momento favorável (o 'kairós' dos gregos), virtude de paciência e de antecipação. Não se pode viver no instante. Não se pode chegar sempre ao prazer pelo caminho mais curto. O real impõe sua lei, seus obstáculos, seus desvios. 

A prudência é a arte de levar tudo isso em conta, é o desejo lúcido e razoável. Prudência é o que separa a razão do impulso, o herói do desmiolado. Ela determina o que é necessário escolher e o que é necessário evitar. Assim, no homem, a prudência faz as vezes do que é, nos animais, o instinto — e, dizia Cícero, do que é, nos deuses, a providência.


André Comte-Sponville
Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, 1999


The Tarot of PragueBaba Studio, 2004



11 de maio de 2012

PEQUENO TRATADO DA HUMILDADE

Seis de Ouros | Rider Waite-Smith Tarot | U.S. Games, 1971
























HUMILDADE é um conceito batido, quase sempre deturpado. Uma virtude empobrecida pelo senso comum, infelizmente. É bem próxima de sua irmã Generosidade, bem falada entre os de boa fé e entre os interesseiros e aproveitadores de plantão, claro. Aliás, segundo Santo Agostinho, "aonde está a humildade está também a Caridade", outra irmã muito querida que por sua vez aparece acompanhada de mais duas, a Modéstia e a Simplicidade. Mas a jovem humildade, meio borderline, é como uma planta que brota num lugar absolutamente ermo e alcança proporções de beleza e significado inimagináveis. Tipo um cacto no deserto, feio e inútil a princípio, mas de perto florido e repleto de água para salvar os sedentos. Falando nisso, a sede por querer se mostrar humilde tem sido grande, percebe? A deturpação da famigerada humildade (até grafada com inicial minúscula, coitada) é tamanha que ela pode se travestir de falsidade, um dos vícios de quem saliva por querer parecer bom e/ou por tentar descobrir algum sentido à própria existência. 

Para ser realmente humilde, a pessoa não deve ter consciência de que se é. A pessoa que se acha humilde não se aguenta de orgulho. Por isso é que a humildade só pode ser alcançada por quem tem uma elevada auto-estima e, ao mesmo tempo, a profunda consciência da transitoriedade. É o rabino Nilton Bonder que conta, segundo uma lenda tradicional judaica, que deveríamos andar com dois bilhetes nos bolsos das calças. Num bolso estaria um deles com a frase "por nossa causa o mundo foi criado", enquanto que no papel do outro bolso estaria escrito "do pó vieste e a ele retornarás". Saber em qual deles meter as mãos na hora oportuna produziria em nós a chance de sermos verdadeiramente humildes.

É prudente saber que toda visão e leitura de mundo oscila entre a nossa grandeza e a nossa insignificância. Aceitando essa condição diante do espelho e diante dos outros é que pode haver um rastro, um toque de humildade. Vale muito ajudar a quem precisa, assim como vale muito saber receber ajuda quando for necessário. Via de mão dupla. A humildade é um processo: mente, corpo, espírito e coração flexíveis e certa naturalidade diante do belo e do horrendo. Por isso vale dobrar seis vezes a língua antes de cochichar ou bradar aos zéfiros o quanto alguém é metido ou  arrogante. Tanto que Spinoza concebe a humildade como "certa tristeza pelo fato de o homem ter em conta sua própria impotência ou fraqueza". 


HUMILTÀ | Iconologia, de Cesare Ripa. Roma, 1603
Não seria ela, então, uma virtude? Bom, na verdade ela é uma virtude rara. Sua pele é diáfana, quase transparente. As principais representações alegóricas a seu respeito a trazem pisando sobre uma coroa. Toda a atenção a este símbolo agora, pois ele constata que a delicada dama nunca prega a riqueza, mas sim uma negação da ostentação, a inutilidade dela. Afirma o grande filósofo que "aqueles que imaginamos mais cheios de humildade e de desestima por si mesmos são geralmente os mais cheios de ambição e inveja". Há de se ter cuidado. Flor [de cacto] que não se cheira. Mas 'humildade' tem raiz no latim humus, 'da terra'. Correspondência direta aos Ouros do Tarô. E o que vem dela pode ser grandioso, sem fazer alarde. Na Iconologia de Cesare Ripa, Humiltà traz uma esfera nas mãos, símbolo daquilo que roda pelo mundo e, se jogada aos céus, logo cai. Tudo o que sobe, desce. As above, so below. Axiomas arcanos convergindo. O senhor de nobres vestes, pintado por Pamela Colman Smith, sabe de suas posses e condições. Waite confere lhe um "bom coração"; não é só generoso. Por isso ajuda de modo igualitário, como bem mostra a balança em equilíbrio.


Aliás, qual Arcano Maior traz uma pequena grande lição de humildade? 
A TORRE. Sim, senhores. Tudo o que brota e o que se constroi sobre a terra vai perecer e ruir em algum momento.  Metáfora do status que se alcança, do poder que se conquista e da ruína que se evita. Fortuna.  Midas e a fome de ouro que o leva à destruição, por exemplo. Depois de o raio atingir a coroa [!] e dar-se conta da desgraça, há o nivelamento. A simples donzela batendo o pé: os ricos sobreviventes agora são pobres, quase indifentes e recebem auxílio de um rico. Assim segue o destino. Por diante. 

Tarot de Marseilles | Millennium Edition, 2011

























Ser humilde não é uma qualidade a ser ostentada, que fique claro. É sempre o outro é que a percebe. Não se projeta em nenhum espelho. Estreitando laços sinceros com a graciosa irmã Generosidade é que você chega ao simplíssimo reino da Humildade [agora em maiúscula]. Ler as imagens do Tarot ou ouvir o que elas dizem são atitudes que dão firmeza para trilhar o caminho até ela. Mas lembre-se: se você se acha humilde, então é porque ainda não a alcançou. 



Leo















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8 de setembro de 2011

VIRTUDE XIV



A temperança é essa moderação pela qual permanecemos senhores de nossos prazeres, em vez de seus escravos. É o desfrutar livre, e que, por isso, desfruta melhor ainda, pois desfruta também sua própria liberdade. Que prazer é fumar, quando podemos prescindir de fumar! Beber, quando não somos prisioneiros do álcool! Fazer amor, quando não somos prisioneiros do desejo! Prazeres mais puros, porque mais livres. Mais alegres, porque mais bem controlados. Mais serenos, porque menos dependentes. É fácil? Claro que não. É possível? Nem sempre, sei do que estou falando, nem para qualquer um.É nisso que a temperança é uma virtude, isto é, uma excelência: ela é aquela cumeada, dizia Aristóteles, entre os dois abismos opostos da intemperança e da insensibilidade, entre a tristeza do desregrado e a do incapaz de gozar, entre o fastio do glutão e o do anoréxico.



A temperança pertence, pois, à arte de desfrutar; é um trabalho do desejo sobre si mesmo, do vivo sobre si mesmo. Ela não visa superar nossos limites, mas respeitá-los. Ela é uma regulação voluntária da pulsão de vida, uma afirmação sadia de nossos poder de existir, em especial do poder de nossa alma sobre os impulsos irracionais de nossos afetos ou de nossos apetites.


A temperança não é um sentimento, é um poder,
isto é, uma virtude.

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André Comte-Sponville | Petit Traité des Grandes Vertus.
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12 de novembro de 2010

LEIAMOS MAIS


Cortador de Waite-Smith


O AÇÚCAR

O branco açúcar que adoçará meu café
Nesta manhã de Ipanema
Não foi produzido por mim
Nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
E afável ao paladar
Como beijo de moça, água
Na pele, flor
Que se dissolve na boca. Mas este açúcar
Não foi feito por mim.

Este açúcar veio
Da mercearia da esquina e
Tampouco o fez o Oliveira,
Dono da mercearia.
Este açúcar veio
De uma usina de açúcar em Pernambuco
Ou no Estado do Rio
E tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
E veio dos canaviais extensos
Que não nascem por acaso
No regaço do vale.

Em lugares distantes,
Onde não há hospital,
Nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fome
Aos 27 anos
Plantaram e colheram a cana
Que viraria açúcar.
Em usinas escuras, homens de vida amarga
E dura
Produziram este açúcar
Branco e puro
Com que adoço meu café esta manhã
Em Ipanema.

Ferreira Gullar

Dentro da Noite Veloz (1962-1975)



Reflitamos, pensemos mais - livros, poemas e imagens.
Os arcanos se alimentam de cultura. Da nossa, interior. Esforço é preciso.

POR MENOS teorias vazias em nome do Tarô.

Ele agradece. Tenho certeza.

20 de setembro de 2009

O PENSAMENTO TAROLÓGICO de Alejandro Jodorowsky


Jodorowsky com as cartas de Marilyn Manson na mesa.


Meus longos anos de contato com o tarô me ensinaram novas formas de captar o mundo e o outro, permitindo que a intuição dance com a razão, amalgamando-se no que é chamado de “Pensamento Tarológico”. Os arcanos têm múltiplos significados que vão do particular ao geral, do evidente ao incomum. É necessário conceber cada arcano como um conjunto de significados. Estes significados adquirem maior ou menor importância de acordo com o sistema cultural de quem as interpreta.



Na realidade, cada ser humano é um arcano. Por mais que vivamos junto a alguém durante toda a vida, não podemos afirmar que o conhecemos muito bem ou por inteiro.



Estamos habituados aos seus pensamentos, sentimentos, desejos, gestos e atividades rotineiras, mas basta qualquer acontecimento extraordinário (uma enfermidade, uma catástrofe, um fracasso, um êxito) para que vejamos nesta pessoa os aspectos inabituais que nos surpreendem de forma positiva ou dolorosa. Parte da realidade é o que pensamos que é a realidade. Parte da personalidade do outro é o que projetamos nele. Os defeitos ou qualidades que vemos nele são também nossos. Estes inesperados comportamentos com que o mundo e o outro nos surpreendem causam reações que dependem totalmente do nosso nível de consciência. Num nível de consciência pouco desenvolvido, toda mudança nos assusta, nos fazem desconfiar, fugir, paralisar, enraivecer ou mesmo atacar. Uma consciência desenvolvida aceita a mudança contínua e avança confiante, sem metas, gozando da existência presente, construindo passo-a-passo a ponte que atravessa o abismo. O primeiro obstáculo que tive de vencer para oferecer leituras de tarô que fossem legíveis foram as antipatias e as simpatias. Cada habitante do nosso mundo representa um ponto de vista distinto, novo, que não existia antes de seu nascimento. Algo original, único. Quando morre alguém que amamos, sentimos que o universo inteiro se esvazia. Seja quem for o consulente, ele merece que o respeitemos como uma obra divina que nunca mais voltará a se repetir, com a possibilidade de deixar no mundo a sua marca, a semente de um bem desconhecido.



Não existe tarólogo impessoal. Todo tarólogo está marcado por uma época, um território, um idioma, uma família, uma sociedade, uma cultura.



Assim como na literatura o romance deixou de ser narrado por um escritor-testemunha – considerado um deus, que deixa acontecer sem intervir e nem ser afetado – para chegar a ser contado por um personagem intimamente ligado aos acontecimentos, um ator a mais na trama. Na leitura do tarô, tive de dar o mesmo passo: de nenhuma maneira suportei a idéia de me colocar na posição de vidente que conhece o passado, o presente e o futuro do consulente, observando-o de uma altura mágica, impessoal, emprestando minha voz a entidades de outro mundo. Sendo os arcanos telas de projeção, era necessário que eu desse conta de que tudo o que via nas cartas estava impregnado da minha personalidade. Não podendo me livrar de mim mesmo, perguntei: “quem sou eu quando leio o tarô? Meu pensamento é masculino? É latino-americano? É europeu? É adolescente? É maduro? Minha moral é judaico-cristã? Sou crente, ateu, comunista, servidor do regime estabelecido? Dou-me conta das características da minha época?”



Foto publicada no livro "Castelli di Carte", pela editora italiana Feltrinelli.


Para chegar a uma leitura útil, me dei conta de que, não podendo desprender-me da minha personalidade, teria de “trabalhá-la”, lapidá-la até chegar à essência. Prometi que não iria ceder aos modismos e não cair nas ciladas de nenhuma tradição e de nenhum folclore. Observei com atenção minha visão do mundo e, com todas as minhas forças, tratei de mudar minha mente masculina aceitando a feminina para então fundi-las até chegar ao pensamento andrógino. Nasci no Chile, me formei no México e na França e, interiormente, deixei de ter nacionalidade, chegando a me sentir cidadão do cosmos. Isso me ajudou a perceber os meus limites enquanto ser humano. Minha consciência não era mais prisioneira de um corpo mineral, vegetal ou animal; era a essência do universo inteiro, o qual permitiu me colocar no lugar não só das outras pessoas, mas também dos objetos. O que sente meu gato, esta árvore, o relógio que trago no pulso, o sol, os transeuntes por onde ando, meus órgãos, vísceras etc.?

Neste trabalho de desprendimento e refinamento, perdi não só a nacionalidade mas também a idade, o nome, os rótulos de “escritor, cineasta, terapeuta, místico” e tantos outros. Deixei de me definir: nem gordo, nem magro; nem bom, nem mal; nem generoso, nem egoísta; nem bom, nem mau pai; nem isto, nem aquilo. Também deixei de pretender realizar metas ideais: nem campeão, nem herói; nem gênio, nem santo. Tratei de ser, com todas as minhas forças, o que eu sou. Deixei de me ater apenas a um idioma e desenvolvi um amor e um respeito por todas as línguas, ao mesmo tempo em que me dei conta de que as palavras que não chegam à poesia se convertem em problemas. Acredito que a raiz de toda doença psicossomática é um conjunto de palavras ordenadas em forma de proibição. Impor uma visão é proibir outras.

O universo não tem limites e funciona com um conjunto de leis que são diferentes, às vezes contraditórias, em cada distinta dimensão. Quanto mais expandia meus limites, mais via os limites dos outros. Hoje em dia, quando leio o tarô, quase me converto em “tu” – me sento frente ao consulente como um céu azul que recebe a passagem de uma nuvem. Na verdade, não lemos o tarô para compreender o outro. O dia em que o compreendermos por inteiro, desapareceremos. Creio que, na realidade, o nosso verdadeiro consulente é a morte. Tratamos de entendê-la, pois quando morrermos, ou seja, quando formos ela própria, nos dissolveremos, por fim, na Verdade.



Nenhum tarólogo pode dizer a verdade. Pode apenas dizer sua interpretação da verdade. Quando se lê o tarô, nada se sabe.



Ele lê para compreender, por isso deve continuar lendo mesmo que não compreenda o que vê. Como toda interpretação é fragmentada, a abundância de interpretações faz com que o consulente chegue ao conhecimento de si próprio. Não existem perguntas insignificantes. As perguntas superficiais ou as profundas, as inteligentes ou as simples têm igual importância: posto que as interpretações de cada arcano sejam infinitas, o valor da pergunta dependerá não de sua qualidade, mas da qualidade da resposta do tarólogo. Dei-me conta de que compreender o que eu via era uma ilusão. Para compreender algo, na verdade eu teria de decifrar o que é o universo. Sem considerar o todo, é impossível saber com certeza o que é cada uma de suas partes. O consulente não é um indivíduo isolado. Para saber quem ele é, o tarólogo deveria conhecer sua vida desde o momento em que nasceu, a vida de seus irmãos, pais, tios, avós e, se possível, de seus bisavós. Além disso, saber qual educação recebeu, conhecer os problemas da sociedade em que viveu, os arquétipos e a cultura que formaram sua mente.

Sendo impossível captar a totalidade do outro, é impossível também julgá-lo.
A positividade ou a negatividade de um acontecimento não pertencem ao fato; são apenas interpretações subjetivas. Em respeito ao consulente, é preferível buscar sempre a interpretação positiva. Um tarólogo não deve comparar seu consulente com outras pessoas que se parecem física ou emocionalmente com ele. Comparar, com uma maneira de definir, é uma falta de respeito às diferenças essenciais de cada ser.
O consulente pode não conhecer a si mesmo e na maior parte das vezes ignorar as influências que recebeu de sua árvore genealógica. Se conhece um só idioma, se não viaja a países longínquos, se não estuda outras culturas, se nunca imobilizou seu corpo para meditar, se entre fazer e não fazer prefere não fazer, refugiando-se pelo medo do fracasso em experiências novas, seu inconsciente se apresenta não como ele é – um aliado –, mas como um mistério inquietante, um inimigo. Nunca saberá qual é a base real do que pensa, sente, deseja ou faz. E durante a leitura que suas perguntas, por mais superficiais que possam parecer, ocultarão processos psicológicos profundos. “Devo ir ao salão de beleza cortar o cabelo ou mudar de penteado?” Pergunta muito simples, aparentemente frívola, que sem dúvida pode render uma resposta profunda.

Se fosse apenas o que dizem as palavras, que necessidade teria a pessoa de ser aconselhada pelo tarô? Bastaria discutir com ela uma decisão a respeito. Mas também se poderia saber que com este corte ou troca de penteado, a consulente estaria expressando seu desejo de mudar de vida, abandonar a solidão ou, pelo contrário, terminar uma relação. Poderia também, sob outro aspecto, iniciar novas experiências, buscar reconhecimento, indicando que há insatisfação consigo mesma ou o descobrimento de novos valores que a obrigam a se desvencilhar de uma antiga personalidade.
O tarô nos ensina a respeitar todas as perguntas: cada uma delas significa uma



oportunidade de aprofundar o conhecimento de nós mesmos para vivermos plenamente como uma pedra preciosa nesta jóia que é o tempo presente. A maioria dos consulentes não se sente como algo ou alguém que “é”, mas como algo ou alguém que “será”. Toda generalização é ilusória. Os acontecimentos não são nunca similares. Quando se põe um frente ao outro, como exemplo, aquele que o cita emite uma concepção pessoal.

Para cada indivíduo, o outro é diferente. O outro, sendo parte de um todo infinito, por mais impossível de definir ao ser captado e interpretado por nós, recebe os limites que correspondem ao nosso nível de consciência. Este outro é uma mescla do que ele aparenta e do que lhe conferimos ao convertê-lo em nosso próprio reflexo. As qualidades que vemos nele, assim como seus defeitos, são parte das nossas próprias qualidades e defeitos. Ao julgar, ao medir os demais, ao colocarmos rótulos – bom, mau, belo, feio, egoísta, generoso, inteligente, idiota, etc. – estamos mentindo a nós mesmos.
A realidade não é boa nem má em si; nem bela nem horrível e nenhuma outra qualidade. A unidade divina não pode ter qualidades e nem ser definida por um tarólogo que não a compreende por não poder contê-la. O todo é todas as partes, mas todas as partes não são o todo. Em nenhum momento o tarólogo pode erguer-se em juízo de seu consulente e aceitar como reais e justas as visões que o consulente tem de seus familiares ou seres que invoca na leitura. No mundo, não se pode afirmar “tudo é assim”. O correto é dizer que “quase tudo é assim”. Se noventa e nove por cento é considerado negativo, não se pode excluir a positividade contida em um por cento. Esse um por cento é mais digno de definir a totalidade do que o restante negativo. Essa pequena positividade é capaz de redimir a grande negatividade. Por isso não se deve afirmar que o mundo é violento. Pode-se aceitar que há violência no mundo, demasiada violência, mas não defini-lo por esse fato. O mundo é tão perfeito quanto o cosmo. Igual é o ser humano. Não é conveniente afirmar que se está doente. O corpo humano é um organismo complexo, misterioso, que possui saúde. Estar vivo é estar são, física e mentalmente. Podemos ter enfermidades e atitudes psicóticas, mas por mais graves que sejam, não se convertem em um “doente” ou em um “louco”; não definem nosso ser senão nosso estado presente. O espírito humano, infinito, não suporta rótulos.
O tarólogo, mais que mostrar os muitos defeitos, deve tratar de captar as qualidades do consulente, pois mesmo que sejam poucas, o ajudarão a ser quem ele é de verdade. Não se deve definir o consulente por suas atitudes, mas sim definir as ações que o consulente tem feito. Ele não é “um tolo”, mas “fez tolices”. Não é “um ladrão”, mas “se apoderou de bens alheios”. Se o consulente é definido por suas atitudes, ele acaba sendo separado da realidade.



O valor de um leitura depende do nível de consciência do tarólogo. Se ele for sábio, pode obter valiosas mensagens por mais absurdos que possam ser os arcanos escolhidos pelo consulente.



A consciência do tarólogo confere sabedoria ou necessidade à sua leitura, mas os arcanos em si não são sábios nem tolos: eles não têm qualidades. As qualidades são de quem os interpreta. As leituras, apesar de sua importância, são sempre interpretações pessoais do tarólogo e por isso mesmo não deve obter validade de prova única ou absoluta. Nenhum leitura pode constituir a prova de um fato, por mais assertiva que seja. A exatidão e a precisão, em uma realidade em constante mudança, são dois obstáculos à compreensão. O desejo de perfeição, de exatidão, de precisão e de repetição do conhecido e estabelecido são manifestações de uma mente rígida que teme a mudança, o diferente, o erro, a permanente impermanência do cosmos. Esta atitude puramente irracional se opõe ao pensamento tarológico, que se assemelha ao poético. É como se escutássemos o poeta Edmond Jabés dizer: “Ser é interrogar no labirinto de uma pergunta que não contém nenhuma resposta”.



Depois que um arcano é interpretado de certa forma, é possível modificar, em outro momento, a interpretação. As interpretações não são os arcanos, eles não mudam, mas o tarólogo sim, enquanto ser que se transforma.



Nunca mudar de interpretação é teimosia. Toda a mensagem obtida pela leitura de algumas cartas pode ser contradita por uma segunda leitura dessas mesmas cartas. As mensagens não são extraídas das cartas sem as interpretações que são dadas a elas. Responder “não” a uma afirmação é um erro. Nada pode ser negado em sua totalidade. É melhor dizer “é possível, mas de outro ponto de vista se pode concluir o contrário”. A doença é essencialmente separação, ou seja, crença de se estar separado. A chave mágica que permite tanto ao consulente quanto ao tarólogo organizar positivamente sua passagem pelo mundo é a pergunta “a vida me faz feliz? Essas pessoas, esse país, essa casa, esses móveis, me fazem feliz nesta vida?” Se não me alegram a vida, significa que não me correspondem como companhia, ambiente, território, atividade - o que me convida a não me envolver com eles. Todo conceito tem um valor duplo, composto da palavra enunciada e uma contrária não proferida. Afirmar algo é também afirmar a existência de seu contrário. Por exemplo: feito (em relação a algo bonito), pequeno (em relação a algo grande), defeito (em relação a qualidade), etc. Fora dessa relação, o conceito não tem sentido. Sem se comparar, o consulente não pode saber quem ele é. A personalidade adquirida, não a essencial, se forma baseando-se em comparação.



Foto também publicada no livro "Castelli di Carte", que acompanha um dvd com palestra e entrevista exclusiva.


O tarólogo deve começar sua leitura ciente de que se dirige a alguém que é o que sua família, sua sociedade e sua cultura quiseram que ele fosse, pelo qual acredita ter metas que não são as suas, com obstáculos superficiais e problemas disfarçados de soluções.
O tarô poderá indicar-lhe sua natureza, suas metas, obstáculos e verdadeiras soluções fazendo-o ver a região silenciosa de sua existência. O que não sabe e o que sabe são partes da vida do consulente. O que não fez é tão importante quanto o que fez. O que não pode um dia fazer faz parte do que já está fazendo. O que ele foi e o que não foi, o que é, o que não é e o que será e o que não será constituem por igual o seu mundo.
Alguns consulentes, por medo de perderem aquilo que acreditam ser sua individualidade, não querem ser tratados e nem curados. Em vez de obterem soluções, desejam apenas ser escutados, amparados.
O tarô não cura; ele serve para detectar a chamada “enfermidade”. Cada um dos arcanos pertence ao mesmo tarô. Por isso, duas cartas

observadas juntas, ainda que pareçam ter significados absolutamente diferentes, possuem detalhes em comum. Diante de qualquer conjunto de cartas deve-se buscar entre elas o maior número possível de detalhes em comum.

Todos os seres humanos pertencem a uma espécie em comum e vivem no mesmo território, o planeta Terra. Por isso, duas pessoas juntas, apesar de serem de raça, cultura, posição social e nível de consciência diferentes, possuem características em comum. O tarólogo, abandonando toda a vaidade de sentir-se superior, deve captar essas semelhanças e concentrar sua leitura primeiramente nas experiências eu o unem ao consulente. Nada melhor que um “ex-doente” para curar um enfermo.



O mau tarólogo, que confunde “pensar” com “crer”, faz interpretações para então buscar nos arcanos os símbolos que podem confirmar suas conclusões.



A verdade para ele é a priori, seguida a posteriori pela busca da verdade. Toda conclusão é provisória e se amplia somente a um momento da vida do consulente, porque foi extraída de interpretações que, por serem pontos de vista do tarólogo, são limitadas. Dar conselhos ao consulente como “você deve fazer isso; não deve fazer aquilo”, é um abuso de poder. O tarólogo deve oferecer possibilidades de ação, deixando que o consulente decida ou escolha por si próprio. Tampouco o tarólogo deve ameaçar (“se não fizer isso, vai acontecer aquilo”), pois o que é feito de forma obrigada, mesmo que pareça positivo, atua como uma maldição. Se o leitor é antes de mais nada “eu”, sendo incapaz de converter-se em um espelho que reflita o outro, na verdade está usando o consulente para curar a si mesmo. Em vez de ver, se vê. No lugar de compreender, impõe sua visão de mundo. Ao invés de despertar os valores do consulente, o submete a um encantamento onde o tarólogo é um adulto e ele uma criança.

O tarólogo não é a porta, e sim a campainha; não é o caminho, mas sim o pano que limpa o barro dos sapatos, não é a luz, e sim o interruptor. O tarólogo não deve fazer promessas e nem bajulações (“Você tem uma alma nobre”, “é uma boa pessoa”, “tudo sairá bem”, “Deus lhe presenteará”, etc.), palavras vazias e inúteis que impedem a tomada de consciência. Para curar-se, o consulente não deve fugir do sofrimento e sim vê-lo de frente, assumi-lo para logo mais libertar-se dele. Um sofrimento conhecido é mais útil que mil elogios.Quando meu filho Teo morreu num repentino acidente aos 24 anos, uma dor indescritível desintegrou meu espírito. Eu assisti à sua cremação e, quando não acreditava ser possível encontrar consolo, vi meu filho Brontis aproximar-se do cadáver e colocar em sua mão um tarô de Marselha. Teo foi cremado e eu recebi em uma urna as cinzas desses seres sagrados. Para sempre, até o final da minha existência, os arcanos abraçados ao meu filho ocuparão um trono em minha memória. Aquilo em que verdadeiramente acreditamos e o que verdadeiramente amamos são a mesma coisa. A imensa dor da perda de um ente querido nos destroça a imagem que temos de nós mesmos. Se tivermos a coragem de nos reconstruir, seremos mais fortes e cada vez mais compreensivos com a dor dos outros.



Traduzido do italiano a partir da quinta edição do livro La Via dei Tarocchi, de Alejandro Jodorowsky e Marianne Costa, publicado em fevereiro de 2008 pela Giangiacomo Feltrinelli Editore de Milão. Publicado originalmente no Clube do Tarô: www.clubedotaro.com.br .

13 de junho de 2008

SANTO MESTRE - Osho fala aos seus arcanos (II)



Osho dialoga com o Tarô. Não só com o que leva o seu nome, mas com todos os tipos, de todas as épocas e cores. Hoje, há exatamente um ano e meio da publicação do primeiro artigo, eu apresento mais uma carta ao místico espiritualmente incorreto. Procuro por novas analogias em minha biblioteca mental enquanto tomo o sagrado café da tarde. Aliás, um café-tarot com direito a amigos e arcanos à mesa posta. São várias as semelhanças e as roupagens, algumas totalmente surreais. O discurso do mestre às lâminas prevalece como conchas no oceano. Ouso mudar a ordem das cartas: o Louco acima do Eremita. O penhasco, a escuridão. A montanha, a existência. Assim o jovem mergulha em si, já que “descobrir o seu ser é o começo da vida. Então, cada momento é uma nova descoberta, cada momento traz uma nova alegria.”


O Eremita e O Louco • Osho Zen Tarot

Sua luz ilumina a escuridão. Seu sorriso prenuncia o próximo passo. Não há medo algum. A queda do corpo? Bom, se estou mexendo com o Pendurado, então analisemos por outro prisma: A Nova Visão. Não é exatamente essa a intenção que deve obter o enforcado, crucificado e apostolado arcano 12?




O Pendurado de Marselha e a Nova Visão

Desde o artigo anterior tenho analisado o arcano 5, O Sacerdote. Polêmico, se compararmos a Osho. A briga é feia, dizem os mais desavisados.“Eu não sou um filósofo. Eu não sou tentando criar uma filosofia. Eu não sou um teólogo também. Assim, eu não tenho nenhum sistema de crenças.” Já adianto: não há como considerá-lo Papa se “todas as crenças são venenosas. Um sistema de crenças é um consolo, uma mentira muito doce, confortável e conveniente, pois dá segurança. A verdade só surge quando as crenças forem destruídas.



Mestres em vermelho: Osho e O Papa de Marselha

Bueno, o Louco já está avisado: “A busca pela verdade começa quando você deixa de lado todas as crenças. Se você pode saber, se é possível saber, então porque se contentar em acreditar?” Quanto ao Eremita, “o pico mais alto da consciência é quando você é apenas um ser – sem nada fazer, imóvel, profundamente silencioso, como se não existisse mais. Subitamente toda a existência começa a derramar flores sobre você.”


Imagino uma das confortabilíssimas cadeiras de Osho frente ao Hierofante, cujos súditos voltam suas cabeças na direção do guru: “Vocês acreditam em alguma coisa, mas não sabem nada. Acreditam em teorias.” A santidade ficaria furiosa, creio eu. Os argumentos do Mestre sobre religião, papado e sacerdócio são fortíssimos. Convencem, até. São Francisco de Assis, por vezes “arcanizado” como Louco e Eremita, servirá para apresentar as novas idéias.



São Francisco de Assis, do Tarô dos Santos de Robert Place
O Eremita do Golden Tarot, de Kat Black


Peregrinação. “A vida deve ser uma busca – não um desejo, mas uma procura; não uma ambição para se tornar isso ou aquilo, o presidente de um país ou um primeiro-ministro, mas uma busca para descobrir “quem sou eu?


Eis o diálogo: “você é tão sensível que até mesmo a menor folha de grama passa a ter uma imensa importância para você. Sua sensibilidade lhe deixa claro que a menor folha de grama é tão importante para a existência quanto a maior estrela. Essa folha de grama é única, é insubstituível, ela tem sua própria individualidade.


Grama? O que temos ao pé do caminhante de Marselha?


Todos os diálogos possíveis, começando pela cor dos cajados
O quinto arcano fica entre eles


É clara a mensagem para o Louco de Assis: “Essa sensibilidade criará novas amizades para você – amizade com as árvores, com os pássaros, com os animais, com as montanhas, com os rios, com os oceanos, com as estrelas, pois a vida se torna mais rica na medida em que o amor cresce, em que a amizade cresce.


São Francisco também caminha pela escura floresta ao lado de um gamo, na colagem primorosa de Kat Black. Autêntica comunhão com seus irmãos, os animais. Ele realmente existe, não foge de seu tempo, já que é o seu próprio tempo. Faço dele as palavras de Osho: “Nós pertecemos intrinsecamente à existência. Nós somos partes da existência, somos o seu coração.” É ele o espírito que liga os dois irmãos arcanos, sem deixar o humor de lado, já que é importante em qualquer fase ou relação, indispensável em qualquer jornada, até mesmo à interior. O Eremita marselhês sorri, você vê? Como um anfitrião que aguarda os (s)eus convidados. Uma festa dentro de si. São Francisco sabe que “a risada é a própria essência da religião”, que “a seriedade nunca é religiosa. A seriedade pertence ao ego, é precisamente parte da própria doença”, lembrando de quando se deparou com a lepra. Sermão aos pássaros, que voam livres como ele próprio.


São Francisco de Assis: 
os três arcanos se encontram em nítidas senelhanças na pintura de Giotto

Leva consigo este ensinamento, que “toda brincadeira da existência é tão bonita que a risada é a única resposta possível a ela. Somente a risada pode ser a verdadeira oração, a gratidão”, enquanto o Louco se esgueira pra ouvir esta passagem. Pura identificação. Por falar no arcano zero de Ma Deva Padma, sabemos que ele não tem como voltar atrás – ele já deu o passo inicial, ou final. Sua trajetória, à mente comum é sempre desviar-se do penhasco, ou perguntar o motivo de tal “suicídio”. Mas sua jornada é como o mecanismo de uma piada, de uma consulta às cartas: “a história vai numa direção e, de repente, ela muda de direção!


Nem falei que o Louco ri porque é óbvio. É assim que ele medita, pois “quando você realmente ri, durante aqueles poucos momentos você está num estado profundamente meditativo”. E ele ri de verdade, até o pensamento parar. Ele não, só o pensamento: continua dançando, pois “a dança e o riso são as melhores portas, as mais naturais, as mais facilmente acessíveis.


Sannyasins rindo com o mestre

O Louco ouve: “se você realmente dançar, o pensamento pára. Você dança sem parar, girando, girando... e você se torna um redemoinho – todas as fronteiras, todas as divisões desaparecem. Você nem mesmo sabe onde seu corpo termina e onde a existência começa.” E ele salta. “Você se dissolve na existência e a existência se dissolve em você; há uma superposição de fronteiras” – como a do Eremita, por certo. Deve ser por isso que o velho de Assis nada possui: “se você é uma pessoa meditativa, você dá, você compartilha – você não acumula, você não é mesquinho. Como você pode possuir? Como você pode reclamar que é dono de algo?” Eis a indignação do Pontífice por sempre se encontrar rodeado de luxo e comodidades de suas capelas. Aliás, falando nelas, “não há necessidade de ir à igreja, ao templo ou à mesquita; onde você estiver, seja bem-aventurado, e o templo estará presente” – diz ao arcano sem número. Uma crítica, talvez, às instituições que convertem à base de dinheiro e lavagem cerebral. “O templo real é criado pela bem-aventurança”.


Sobre as técnicas espirituais, Osho é enfático. Louco. Renunciador. “Você precisa se lembrar de que tudo deve ser abandonado para que você permaneça em sua total pureza. Mesmo uma experiência espiritual corrompe; ela é um distúrbio” – e voltamos à lição essencial ao Caminhante. Pura metáfora para a humanidade sedenta por princípios e doutrinas. Meras conchas no oceano de tudo. E ele continuaria tranquilamente acomodado, movimentando sua xícara. Não há discussão que seja burlada pela verdade. Nem prazer maior que a renúncia.



Mais café?

Já trago. Com mais arcanos.


Leo
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IMAGENS
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13 de janeiro de 2007

LOUCO MESTRE – Osho fala aos seus arcanos (I)


Vários anos se passaram desde a primeira vez em que me deparei com livros e vozes citando Osho. Pra quem não sabe, ele foi e é Bhagwan Shree Rajneesh: o guru indiano que alimentou o coração de seguidores (ou melhor, renunciadores) em todo o mundo. Temido, amado e espiritualmente incorreto. Devido aos seus discursos nada comuns, a identificação com a ideia de renúncia foi clara — fisgou minha atenção e todo o resto.

Tempos depois, enquanto garimpava alguns decks numa livraria, coloco as mãos no Osho Zen Tarot, pintado pela artista plástica Ma Deva Padma que também se embriagou com seus ensinamentos. Desenvolvido ao longo de cinco anos, o projeto fora iniciado com a aprovação do próprio mestre e hoje consiste num belo e enigmático instrumento oracular. A arte da vida em cartas. Nas lâminas, várias representações de seus insights que assustam e encantam buscadores há mais de cinco décadas. Mesmo que sua visita à Terra tenha terminado em janeiro de 1990, a mensagem ainda permanece vivíssima, cada vez mais arrecadando dinheiro. Uma herança espiritual criativa, com metáforas e analogias sempre inovadoras. Não, não é pra qualquer um.


Pois bem, com o maço em mãos, me lembro de suas palavras: Transforme as pequenas coisas em celebração”. Tiro duas cartas e abro um sorriso pela surpresa, O Louco e A Solitude (o tradicional Eremita). Irmãos de Espírito que me jogam aos olhos suas semelhanças.




Ambos estão à beira de um penhasco. O Ermitão — quase sempre parado em terra firme — aqui caminha na escuridão, próximo a um abismo. O Louco, inebriado, deve saber que sua jornada se estende às gélidas montanhas do fundo da paisagem. É lá que se encontra o velho monge, talvez numa caverna fria, iluminada apenas por sua presença. Alongando as comparações, vemos a irmandade entre esses arcanos e os concebidos por Pamela Smith: o dia ensolarado contrasta com os montes nevados do Louco, enquanto o Eremita vê bem onde pisa, mesmo com a lamparina. No topo, puro controle e rigidez.




Esse mundo onde encontramos o velho sábio do tarô Rider-Waite representa o nível de conhecimento que ele conquistara, o qual o Louco ainda tem de alcançar. Ambos os cajados simbolizam o poder, o comando intelectual e espiritual. A dança em direção ao penhasco é contínua, como a experiência que Osho oferece. “Não é esse o caminho para o saber – o conhecimento não é o caminho para o saber.” – contradiz o mestre do primeiro par de arcanos. Questionando-o sobre qual é o caminho, os dois logo escutam: “A admiração. Deixe que seu coração dance maravilhado. Encha-se de admiração: pulse com ela, inspire-a, expire-a. Por que tanta pressa para conseguir a resposta?”


Os Loucos sentem a mensagem. Eles nada esperam, nada planejam. A cabeça diz: “Pense antes de saltar.” E o coração diz: “Salte antes de pensar.” O Eremita e o Louco. A cabeça e o coração, respectivamente. Seu andarilho está aprendendo que “a vida é um fim em si mesmo. Ela não é um meio de se chegar a um fim, ela é um fim por si só. O pássaro em pleno vôo, a rosa ao vento, o sol nascendo pela manhã, as estrelas à noite, um homem apaixonando-se por uma mulher, uma criança brincando na rua... Não existe propósito algum. A vida é simplesmente usufruir dela, deleitar-se com ela. A energia está transbordando, fluindo, sem absolutamente propósito algum.”


E lá vai o radiante bufão, confiante, seguindo até o fim. Uma grande diferença entre os colegas "sem número" é que o de Waite carrega sua trouxa de experiências, enquanto o de Osho leva somente uma rosa branca. A pureza em si, a cor do silêncio absoluto ou ainda da Sabedoria, na iconografia sufi. A mão esquerda vazia despede-se do que viveu. Ou acaba de deixar em terra sua pequena bagagem para distrair o cachorro insistente. Ele quebra o hábito e questiona o todo, corre o risco e continua, pois “ninguém sabe o que pode acontecer. A pessoa deixa de lado tudo o que conquistou; tudo com o que tem familiaridade e parte para o desconhecido, sem nem ao menos saber ao certo se existe alguma coisa na outra margem – ou se existe outra margem.”

De fato, ser louco fere muitas pessoas. “Elas não aceitam a idéia de que você tenha alcançado alguma coisa que elas perderam. Elas tentarão, de todas as maneiras, torná-lo infeliz, tentarão te trazer de volta ao rebanho”. Não é essa a função do animal? Mas o Eremita não quer voltar ao rebanho, mesmo que possa. “Solidão é quando você está sentindo falta do outro”, Osho explica a ele, enquanto sua própria luz o guia. "Solitude é quando você está encontrando a si mesmo”, rebatizando-o então.


“A mente comum sempre joga as responsabilidades nos outros, diz sempre que é o outro quem faz você sofrer”, mas não há culpados, pois ambos estão sozinhos. Seus passados já congelaram, petrificaram no tempo. Aqui não lhes cabe culpar alguém, esse venenoso hábito. Aliás, Osho alerta que, “na verdade, toda malandragem e trapaça deste mundo servem para nos deixar conscientes.” Eis o Grande Rito. Da consciência. À consciência.


“Você está só no mundo: você veio ao mundo só, você está aqui só, e você deixará este mundo só.” A trouxa vazia e a flor à Existência, pois todas as opiniões alheias ficarão para trás; somente os seus sentimentos originais, somente as suas experiências autênticas o acompanharão até mesmo além da morte.” Apenas as qualidades, sem o peso sobre o ombro.



Osho como o nono arcano de Waite

Pura maturidade, que não tem nada a ver com a tal rigidez. Ao contrário, ela deve traduzir a flexibilidade que o Louco possui, assim como o Eremita carrega a loucura. São os únicos opostos, as únicas qualidades que devem se mesclar. É a troca possível. A vida alheia nunca lhes interessa, pois vislumbram que “a causa da infelicidade está no apego que temos aos outros, na expectativa em relação aos outros, na esperança de ganhar felicidade dos outros.” Sozinhos por opção, não por sina. Nem missão.


Quanto à vida de Osho, várias situações remetem aos dois arcanos, como o fato de jamais conseguir se relacionar profundamente com alguém desde a infância. Sobre a perda seus avós, as pessoas que mais amou, revela que "a condição era de total escuridão. Era como se eu tivesse caído no fundo de um poço escuro. Naquela época, eu sonhava muitas vezes que estava caindo, caindo, e entrava cada vez mais num poço sem fundo. Ficam nítidas as semelhanças com as lâminas: "Não havia mais nada além da escuridão e da queda, mas aos poucos fui aceitando até isso. Senti muitas vezes que precisava concordar com alguém, devia me segurar em alguma coisa ou aceitar qualquer resposta, mas isso não estava de acordo com minha natureza. Nunca fui capaz de aceitar o pensamento de ninguém.”


Esse louco pulou. Esse velho tornou-se iluminado. E ambos jamais ouvirão os outros. Caso contrário, a loucura e a maturidade estariam perdidas. “Essas qualidades são suas únicas companheiras. Elas são os únicos valores verdadeiros, e as pessoas que as alcançam, somente estas vivem. As outras fingem viver.”


A jornada continua.

As semelhanças e os diálogos também.


L.




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Santo Mestre: Osho fala a seus arcanos II