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24 de setembro de 2013

JARDIM DE DELÍCIAS

este jardim é meu, apenas para que a vossa paz seja respeita-
da; para além da porta que dá acesso à rua do jardim, ides ad-
quirindo, pouco a pouco, o fulgor de manifestar, no vosso corpo, o tempo;

Maria Gabriela Llansol | Apoptose



The Tarot of the Sevenfold Mystery | Hermes Publications, 2012.


Só sei que trabalhar em casa tem suas mil glórias: jornada de herói. Pântano pavimento de contrariedades administráveis. E sinto o dia auspicioso, cheio de frio e cinza de chuva. Trabalhando desde cedo na tela do Mac, lendo pessoas e páginas, reviro futuros antigos em baralhos recém-chegados. O entregador dos Correios já aparece dizendo 'bom dia, Leonardo; este aqui veio dos Estados Unidos. Assina aqui, por favor'. É Primavera e a egrégora favorece a sobreposição de sensações e impressões acerca do mundo. Renovar os meandros.

Entre o Cinco do leite derramado perto da ponte e o Sete do devaneio conjurado em alta voltagem poética, o Seis de Copas equilibra o teor dos vasos. Um jardim suspenso entre desilusão e expectativa. O senso de serenidade que se evoca do prazer. O recinto da fruição.

Mr. Crowley e Madame Harris esquematizam o portal do Senhor do Prazer de modo que haja fluência. A dicção do gozo é treinada em pétala. Sexo com a pessoa amada seguido de um belo café da manhã na varanda, por exemplo. Não dissocio, de modo algum, o protótipo deste arcano à sensação bucólica. Há de se ter um jardim por perto.



Crowley-Harris Thoth Tarot | AGMüller, 1986.


Mas o desejo de escrever para esta carta, apesar de antigo, veio forte com a nova estação ao abrir e embaralhar o mais recente trabalho de Robert Place, The Tarot of the Sevenfold Mystery, publicado no ano passado pelo seu próprio selo*. A lâmina, batizada de The Gardener, é um primor aos olhos acostumados à pinta e à cena de Pamela Smith: uma donzela pré-rafaelita, nos moldes de Burne-Jones, regando seus vasos de modo aplicado à delicadeza — um convite à atmosfera de horizonte interior: calmaria, sossego. Até melancolia, se não dou de ombros às atribuições mais variadas dos estudiosos. 



Haindl Tarot | US Games, 1990.


Uma dessas atribuições, aliás, me esboça um sorriso. Hermann Haindl, criador do assombroso Haind Tarot, grava o hexagrama 58, A Alegria, na base desta carta. Rachel Pollack traça, no livro escrito sobre o baralho, as concepções do artista em relação à ideia de felicidade, de sucesso e dos bons momentos entre pessoas queridas. Um lago sobre outro lago. The Joyous Lake — coerente relação entre a sabedoria oracular chinesa e o naipe de águas, apesar de todas as minhas reservas e ressalvas a atribuições deliberadas que se fazem entre um sistema divinatório e outro.



IN AN OLD GARDEN

Cresci em um grande quintal repleto de árvores, plantas e portões antigos de ferro fundido. Criava inúmeras personagens de modo quase instantâneo e encarnava cada uma delas durante a semana, com amigos e irmão ou 'sozinho'. Entre a realidade e a imaginação, o prazer de ser e sentir. Em Copas nos permitimos outros mundos. O paralelo necessário da magia. 




Smith-Waite Tarot | US Games, 1971.


Entre. A preposição que tenho repetido até aqui porque são justamente as sobreposições que fazem deste arcano um jardim secreto de conhecimentos e gentilezas. No Tarô Smith-Waite, especificamente, as crianças se relacionam 'em um velho jardim', segundo a Chave Pictórica escrita por seu idealizador. As taças repletas de flores e um guarda devidamente armado no fundo à esquerda, fazendo a ronda pelo caminho ladrilhado. Estamos literalmente no quintal da casa. Vendo a imagem em preto e branco percebe-se as duas dimensões que a artista conseguiu plasmar em uma das cenas mais doces da galeria de Copas. Gentileza, delicadeza, inocência e a chance de fazer do que é simples, inocente e sincero uma oportunidade de grandeza. 



GET BACK TO SERENITY

Mas Leo, um jardim não é Ouros puro? 
Não, puro não. Que são vasos senão Copas? Receptáculos. Recipientes que recebem a terra. O jardim pressupõe as formas da água. O passado do fruto é a própria semente e não só, mas o fruto anterior. Daí, talvez, posso jogar luz aos atributos clássicos de nostalgia e memória vinda à tona. A nossa velha infância permeando o gramado.



Morgan-Greer Tarot | US Games, 1979.


Para os italianos, o Sei di Coppe é o que se pode chamar de arcano di ritorno. Combinado, por exemplo, com o O Carro, significaria a volta de um antigo amor, ou mesmo recordações que levariam o coração a um estado sereno.  Com O Eremita, no entanto, é um velho amigo que retorna, provavelmente depois de muitos anos, jogando luz nas memórias — um presságio de saudosismo. Mas é a serenidade o cerne, característica que pode fazer questionar a ideia de sucesso a qualquer custo que esta carta não prenuncia. E para quê perder-se na loucura da correria se não é hora nem lugar? Nutrir os afetos na figura de uma planta é tão importante quando trabalhar pesado para pagar as contas. Uma postura intuitiva tende a ser mais valiosa que toda a tensão do mundo lá fora. Aliás, de inimigo ele tem pouco, diria um mestre Zen que rejuvenesce ao longo dos anos, curvado aos seus canteiros. Um jardim de delícias, se [me] permito. 


Cresço, ainda hoje, nos meus próprios quintais. Em outros, não só no da infância. É encontrando o ponto de suntuosidade que a natureza dos sentimentos oferece que treino minha leitura de mundo. Em consonância com a beleza e a verdade, independentemente do passado; entre a possibilidade de respirar e a necessidade de agir. É primavera. E os pés vão descalços aguar as heras no vento, com todo o amor de Flower Child que me define.

A fruição é gradativa; se insinua aos que a regam. 

















L.






16 de outubro de 2012

O ORÁCULO FAZ DO ACASO O CENTRO

Irving Penn | The Tarot Reader . 1944


Qual é a diferença entre um moderno experimento científico físico e um oráculo divinatório? Num experimento físico, o acaso é eliminado, é empurrado para a fronteira, o mais longe possível, e sobra um resíduo que não pode ser eliminado. No oráculo, adotamos um enfoque diferente, complementar, ou seja, o acaso é colocado no centro; apanhamos uma moeda, jogamo-la ao ar e a probabilidade de que caia de coroa para cima é a fonte de informação. Assim, num caso, a fonte de informação é constituída pelo acaso e, no outro, ele é o fator de perturbação que temos de eliminar. Eles são absolutamente o que, em moderna linguagem científica, chamaríamos de mutuamente complementares. Os experimentos eliminam o acaso, o oráculo faz do acaso o centro; o experimento baseia-se na repetição, o oráculo está baseado no ato único.


Marie-Louise Von Franz | Adivinhação e Sincronicidade.
Editora Cultrix, 1987.

5 de agosto de 2011

UM ORÁCULO EM DELFOS


Acordei e disse para mim mesmo: estou na Grécia, onde tudo começou,
se é que as coisas, diferentemente dos artigos da enciclopédia sonhada, têm início.

Jorge Luis Borges



Arcanos sobre pedras do Santuário de Apollo em Delphi, na Grécia.


Peregrinar. Verbo que traduz bem o ofício de todo e qualquer leitor de imagens. Quando destrinchamos um lugar, estamos lendo os sinais do tempo, as conversas e as situações, boas e terríveis. É um trabalho silencioso porque toda leitura é assim. Não se admite barulho externo quando se está imerso num mundo que implora pela sua atenção. E pelo Mediterrâneo tenho, pois, peregrinado.

30 dias desbravando caminhos - alguns, bem conhecidos. Outros, totalmente inimagináveis pelo trajeto mental de viajante, ao escolher hotéis e programar passeios. Rotas sagradas de leitura. Ir à Grécia seria um dos meus maiores sonhos se realizando em pleno verão. Dos seis grandes sítios arqueológicos visitados, Delphi seria o mais difícil de se chegar. Imaginei que seria assim. E foi. Mas a experiência de peregrinar descalço sobre aquela terra sagrada, em honra a uma divindade luminosa pela qual tenho especial apreço, foi revelador. No mínimo.




Apollo "arcanizado" no dito Tarocchi di Mantegna e n'O Sol do originalíssimo Tarocchini di Mitelli.


Apollo é o padroeiro dos poetas e, em sua natureza pítica, senhor das profecias. Levei o Tarô para receber essas energias e abençoar palavra e imagem, pedindo que se estendesse a todos os que realmente se dedicam e merecem a serenidade desencadeada pelo oráculo. A mesma serenidade forjada no rosto majestoso do Auriga encontrado quase intacto em Delphi, o correspondente direto d'O Carro. Os cavalos se perderam nas pedras do tempo, mas o protótipo do trunfo está lá. Intacto e à vontade. Quem o guiava, talvez, eram os cisnes sagrados do deus.




Who´s in the Chariot? O auriga délfico e O Carro do Tarot de Paris.
Apolo e os cisnes habitando o arcano.




Entendi que a resposta à Esfinge depende muito do Conhece a ti mesmo. Esse mandamento ecoa sobre todo e qualquer maço de cartas. Quem somos, enquanto tarólogos? Somos os arcanos? Quem são os nossos monstros e quem são os nossos heróis? Respondi de olhos fechados, agradecendo pela primeira oportunidade de prostrar-se diante dela. E entendi que, revendo toda a odisseia mediterrânea, a mensagem estava dada.



A Esfinge, um presente de Naxos para demonstrar respeito ao oráculo.


Me veio à memória a época em que morei na Itália. Houve o contato marcante com Ludovica, uma verdadeira strega que perambulava pelas vielas de Perugia, conversando com os gatos. Me disse, numa das vezes em que nos encontramos, que os filhos del Dio della Luce se reconhecem pela verdade e pela justeza. "La giustizia, Leonardo. La vita è magia. E la magia si può con la verità". A partir da experiência na Sicília, onde encontrei o oitavo arcano em frente a uma cafeteria {encontro devidamente registrado aqui}, tudo começou a ter um novo sentido. Serendipidade. Então a Pitonisa falou por ela.



A sibila délfica em pleno diálogo iconográfico com o segundo arcano maior.


Conhecer cada vez mais os meandros de mim mesmo. Conhecer o profundo das imagens. Mergulhar nas palavras e extrair delas o que é essencial, o que surte efeito. Não a quantidade; a qualidade. E espiritualizar-se com verdade, permitindo que o medo se dissolva, mas aos poucos. O famoso μηδεν αγαν (Nada em excesso) vale. E ainda nos remete à simplificação necessária do estudo e da prática do Tarô. 

Do alto do Parnaso, com os arcanos em leque, pude compreender Ludovica. Conhecer-se primeiro para depois conhecer o outro a partir do oráculo. E perceber, pela apodrecida Píton, que as sombras também são importantes e merecem luz. As intempéries tão divinas quanto a própria peregrinação. As leituras truncadas, o receio de interpretar erroneamente uma carta ou mesmo de orientar sem ver com exatidão também são partes importantes do processo tarológico. Nenhum templo nasce pronto.



Porque a tua luz, Apollo,
É a que aproxima todos os destinos



Somos andarilhos sobre imagens. As pedras são do mesmo material dos desenhos. As mensagens têm texturas semelhantes às dos augúrios das Sibilas. A metáfora se descomplica e desabrocha no entendimento de quem nos ouve. Sobre as imagens. E assim eu traço os paralelos entre Delphi e a confirmação da minha escolha e do meu caminho. O arcano 19 marselhês encena Apollo e seu irmão Dioniso: uma aproximação sutil entre a beleza e o deleite. A presença das duas crianças sob o rei dos astros está secretamente relacionada ao conceito de "Sol sempre jovem" que os antigos mantinham. Baco era considerado "o mesmo que o Sol". E é Febo, o eterno jovem, quem lhe estica o braço.



O arcano muda quando você diviniza a visão sobre ele.


O Tarô é povoado pelos deuses. 
Todos norteados pelo Ônfalo, a pedra saturnina conservada no museu délfico, o centro inspirador de todos os oraculistas. No centro do Mundo, a Sibila dança nas palavras e reconfigura a nossa linguagem arcana. A cada instante. Tenho, portanto, peregrinado. E também constatado, ao longo do meu ofício de trajeto por entre tantos campos sagrados, que a poesia que anima os símbolos permite até mesmo que a pobre coroa de penas [de cisne?] d´O Louco seja tão sagrada quanto a de louro. 



Os deuses irmãos se encontram também na iconografia tarológica. Olhos livres para vê-los.
Um close n'O Louco do Visconti Sforza e em Apollo do grande pintor Gianbattista Tiepolo, 1757.



Voltando ao Brasil é que pude me dar conta do quanto tem sido importante essa visita aos deuses. Essa visita deles em mim, turbinando a fome de pesquisa e vivência desses 78 mapas de locais de poder. E desejo o mesmo a quem trilha esse caminho de descoberta do mundo, dos homens e dos arcanos. 


Aprendamos a ler nas entrelinhas. Entre os traços. Perceber que o Tarô é um instrumento de aproximação de ideias e pessoas. Nada mais que o próprio umbigo do mundo fragmentado em lâminas afiadíssimas de sabedoria, norteadoras a quem for digno de seus augúrios.





Lembro de Ludovica com todo o carinho que se pode lembrar de uma avó querida que nos faz odiar A Morte por estar tão próxima dela. Por consequência, recordei as palavras da escritora Frances Mayes que no delicioso Sob o Sol da Toscana provou ser absorvida pelos sussurros apolíneos das coisas e dos lugares. (...) Como se estivesse arejando um baralho, minha cabeça percebe de relance os milhares de chances, desde as triviais às profundas, que convergiram para recriar este lugar. Qualquer desvio arbitrário ao longo do caminho, e eu estaria em outra parte; seria uma pessoa diferente. De onde é que veio a expressão "um lugar ao sol"? Meus processos de pensamento racional sempre se apegam à ideia do livre arbítrio, do acontecimento aleatório. Meu sangue, porém, acompanha facilmente a corrente do destino. 

E assim é. E que os justos e conhecedores de si mesmos
ouçam {até o fim} a música de Apollo.






Com afeto e Verdade,

Leo