20 de maio de 2021

A SALAMANDRA


Palazzo Grimani 

Veneza, 2021


    
Quando me perguntam porque Veneza é a minha cidade (mítica, biográfica, permanente), pensam que é sobre as gôndolas, os sinos, os barcos, as águas, as luzes. Mas todo o fascínio vai além da ancestralidade rastreável. Ou talvez venha dela, propriamente. Porque é também sobre os segredos e os detalhes, muitos deles talhados e encerrados em pedra. Tenho um exemplo: por trás de uma parede da Sala de Psiquê do Palazzo Grimani — um dos grandes museus da Itália, escondido no labirinto do bairro Castello e só avistado em toda a sua glória pelo Canal Grande ou rio San Severo —, acabam de descobrir um painel em pedra de uma Salamandra, símbolo alquímico e regente elemental do fogo, provavelmente de 1530. Em chamas. Intacta.



Palazzo Grimani 

Veneza, 2021


Pensando nos tantos séculos reluzindo no escuro, em perfeito estado, lembrei de Borges citando Santo Agostinho, talvez n'O Livro de seres imaginários, sobre corpos que podem ser perpétuos no fogo. Me faço imaginar o estudo de alguns documentos antigos das alas leste e norte, plantas e cartas e gravuras bem conservadas na Biblioteca Marciana que alegassem a presença remota de afrescos ou incisões, e arquitetos atentos ao que não se vê senão o branco gelado de um pavilhão nada medieval, perscrutando o que (ou quem) descansaria (ou não) rente aos tijolos impassíveis. Melhor: avento o susto dos museólogos e dos guias descansados com a sensação térmica alterada na muralha ao sul, o perigo de ferver os jardins suspensos de Camillo Mantovano, abrasar os mármores claros da Sala do Doge ou mesmo ameaçar a abóbada de Ganimedes, suspenso com Zeus feito águia em seu silêncio. 




ATALANTA FUGIENS
Michael Maier & Matthäus Merian
1617


Risco de incêndio há sempre, e qualquer fagulha no santuário do Mar Tirreno é ofensa e piada a essas estruturas de milênios, com seus tecidos e troncos e vidros sustentando a maior maravilha do mundo. Ainda assim se evita, e lá se vão as tantas análises, os termômetros gritantes e seus motivos desconhecidos. Só uma alternativa drástica abrandaria a tal quentura: quebrar a parede, passar tudo à prefeitura como exigência da restauração e ver, por entre marretas e sujeira histórica, quais seriam as razões do mistério, porque elas existem. E persistem, como se vê. 



   


Palazzo Grimani 

Veneza, 2021



Faz calor em Veneza, e agora se vê um motivo. O fogo, certa vez ocultado, insiste em queimar. Faz sua hora. E esse é um exemplo. Intacto. Agora eu respondo: é sobre as gôndolas, os sinos, os barcos, as águas. Mas é sobre essa cidade, que liberta salamandras e revela mais dela mesma — e mais de mim, por sagrada consequência. E é, sobretudo, pelo fogo. Que não e nunca se apaga.




Leonardo Chioda





ÁS DE PAUS
The Alchemical Tarot

Robert M. Place