21 de julho de 2008

CARTAS DO AMOR

Um enigma de ouro, sangue e paixão
Detalhe de “La Primavera” de Botticelli, 1482.




"Il vous aime, c'est secret, lui dites pas que j'vous l'ai dit..."
Carla Bruni

Domingo é dia de Café Tarot. Pra mim é todo dia, principalmente durante as tardes ensolaradas do interior paulista onde me permito longa folga, aproveitando o jardim e a cortina de heras próxima à mesa com xícara, arcanos e livros bem distribuídos. Após uma leitura com um cliente antigo, levo meu café até a boca, ergo uma carta do Visconti-Sforza, próximo da fumaça: Os Enamorados. “Um banho de sangue”, penso alto assim que termino o gole.


O momento dos amantes – Tarô Visconti-Sforza Pierpont Morgan-Bergamo.
Eis a cena do enlace entre Francesco Sforza e Bianca Maria Visconti – sugestão de Stuart Kaplan no primeiro volume de sua Enciclopédia do Tarô. Seria essa ligação de sangue o motivo do vermelho vivo? As casas, praças e palácios milaneses, lavados pelo fluido da vida numa mistura de duques, nobres e governantes. Mas talvez o que se nota é que se torna inadiável, interessante e importante a ser comentado. O Cupido, acima do casal, tem asas rubras. A esfera direita do seu cérebro parece exposto. Do órgão genital, a vermelhidão sugere sangue expelido. Ou vinho, o próprio sangue dos deuses, embriagando os prometidos quando mostro o Ás de Copas transbordando na minha imaginação. Ele não voa; prostra-se sobre um pedestal quase imperceptível. Fico sabendo, posteriormente, que seria uma fonte. Aquela tal da Eterna Juventude, ainda mais na cidade plena das mil e uma construções. Suas asas, então, encharcadas. Penso nesses ornamentos. Dedico-lhes certo tempo enquanto os leio, ouvindo o canto de Safo.

Francesco Sforza e Bianca Maria Viscont - pinturas atribuídas a Bonifácio Bembo, 1460.
Não dá para atribuí-los apenas à deterioração natural do trunfo. Kaplan explica que o revestimento de fundo poderia ser de um ouro inferior ao dos demais arcanos. Sei que tudo faz sentido nas páginas do tarô. Muita, muita atenção.

O anjinho vendado segura uma flecha em cada mão. “Pois bem”, eu me pergunto, “cadê o arco, Cupido?”. “Está com ela”, me responde assim que desviro, por impulso do acaso, a lâmina mais próxima – A Morte. Tânatos que acompanha Eros, óbvio. Se eu tenho o esqueleto junto à primeira carta, percebo que têm sido equivocadas as noções do amor ao pensar que ele permanece (ou que deveria permanecer a qualquer custo) igual para todo o sempre. Mas o amor só é autêntico quando dá liberdade, já que tudo é uma constante transformação - ainda mais quando ele vem de repente, sem qualquer esforço, como um presente natural. Se verdadeiro, não morre; transforma-se. Noção básica da ciência. E do coração, claro.



A Morte (Pierpont Morgan-Bergamo) e Os Enamorados (Cary-Yale).
Aqui o pano que antes cobria a visão do garoto-amor está preso à testa do crânio. A Inominável conhece seus alvos. Cada um tem sua hora e ela não perde a mira. Parei. Brinco de quebra-cabeça com os dois arcanos – um antes, o outro antes do primeiro – experimentando uma seqüência para possíveis epifanias arquetípicas. Sempre possíveis, sabemos todos.

O amor, a morte, AMORte, escolhas, morrer, escolher morrer... ESCOLHER MORRER?! “Amar é deixar-se matar”. Pronto, consegui. As duas divindades gregas desabrocham em conceito prático. Atuar com o arco é uma função nobre, um exercício de espírito. É a arte do cavalheiro, que garante a caça, envolve a pretendente. Sempre carregando um sentido masculino, a flecha penetra e fecunda o veneno, agindo como um raio – modifica aquilo que toca. Ouço sempre dizer no duplo caráter do querubim dos casais. Seria, o outro lado, uma força perniciosa que conduz à ruína, já que exerce poder sobre os homens, sobre a constituição e o curso do Mundo.

Lanças e flechas sem saber em quem – ofício do nosso Eros – é antecipar mentalmente a conquista de um bem fora do alcance. Arriscar, brincar com/no acaso. E quem sabe se ele não espia lá do alto, por uma brechinha do tecido? Ele é quem transtorna, desequilibra e invade o mortal. É a morte súbita, fulmina a vítima. Tanto as do Amor como a da Morte, as flechas atingem o alvo bem no meio. São certeiras, apesar de tudo. Com Ovídio aprendi sobre elas: “se forem de ouro, elas inflamarão o pretendente”. É assim no Visconti-Sforza. O arqueiro do amor e o arqueiro da morte guardam este segredo. Conversam e competem, será?

Cena do casamento em 1441 na Igreja de San Sigismondo, em Cremona.
Pertencente ao “
Codice de Donazione”, 1464.

Não meço o tempo e puxo outra carta. Agora é o Luminoso que se mostra. Apollo, o deus arqueiro. Os relatos míticos garantem que suas flechas são do mais puro fluido da beleza, temperadas docemente em seu coração. Mas Apollo é também aquele que entrega a peste: para vingar honra de Crises, seu sacerdote, semeou a Morte no acampamento grego nas praias de Tróia. No Pierpont Morgan-Bergamo, temos o jovem sobre uma nuvem carregada, segurando o sol acima de seu corpo. É o rosto de Febo que reluz no tom ígneo. Do fogo, do sangue, da vida. E se for uma máscara? É uma possibilidade. O pequeno Eros, já que tem asas, faz o papel do deus. A encenação greco-romana dos sentimentos que rondam a cidade, lá embaixo. E então tomemos distância das banalizações sobre o Deus-Luz que o reduzem à figura de um belo rapaz eternizado em desgraças amorosas, ou então a uma simples oposição nietszcheana de Dioniso – nada de superficialidades agora. Apollo irradia vitória, domínio e entusiasmo pela vida. Casa a paixão e a razão: ilumina, conscientiza e transcende expectativas e desafios.

Posições semelhantes: Apollo arqueiro de 460 a.C. no Museu do Louvre e o Sol.
A moral desse enigma só pode ser esta: diante das escolhas ou mesmo das decisões do destino, morremos individualmente, já que o amor é encontro de vida e morte. Os amantes se deparam com o desejo de dissolver o “eu” e o “você” em uma unidade. Estão separados da própria origem e então caminham de volta para o todo. O desejo de voltar para casa, o próprio coração.

O Sol, portanto, chega para clarear a realidade e as necessidades afetivas. É a maturidade, a confiança, a nitidez, a entrega enquadrada e pintada no dourado. E qualquer um que tenha a audácia de afirmar que domina o baralho deve ao menos respeitar seus segredos e esforçar-se para traduzi-los sem pretensões. Deve deixar-se dominar por ele, como seus sucessores, clássicos e modernos. Deixar-se dominar pelo amor, no entanto, é uma conseqüência. Esteja o casal pronto ou não, ele morre, renascendo em união que ultrapassa os tempos. Concreto, lívido, presente. Como teria sido com o casal italiano. Em juramentos de sangue, em vinho, em ouro.


P.S.: AMOR que se mostra ao espelho: ROMA.
Embarco logo.


Leo



FONTES

Enciclopédia do Tarot - volumes I e II, de Stuart Kaplan.

Imagens: Google e Taroteca

9 comentários:

Anônimo disse...

Divino!!!!
Qanto cuidado e profundidade com as palavras... muito lindoi, parabens mais uma vez!

Beijoes, Vera

Anônimo disse...

Vc eh sensacional.
Nunca vi nada parecido. Continue sempre por favor.

Abs

Anônimo disse...

LINDISSIMOOOOO MEU QUERIDOOOOO!!!!
VAI TER CONTINUACAUM??? OBAA! BJOO DA NATH

Alexsander disse...

Fantástico Leo!!! Suas palavras parecem mais as flechas de ouro do cupido que nos penetram até o fundo da alma intensa e suavemente e deixam lá dentro aquela luz, aquele calor, aquela sensação maravilhosa da qual não queremos nos separar.

Parabéns mais uma vez!!!

Cassia disse...

gostei muito do que você escreveu aqui. penso muito no Sol como a carta da clareza. falar que chega para clarear a realidade e as necessidades afetivas é bem legal.

e esse insight desse anjo com o sol ao fundo na carta dos enamorados foi bacaníssimo.

Anônimo disse...

Eu quero livros de Leonardo Chioda e quero já!

Anônimo disse...

O melhor, Leonardo, é saber que existe alguém que escreve coisas maravilhosas ao inves de ficar brigando em comunidades e foruns. A vergonha dos praticantes estudantes que discutem significaçoes é bem grande... Mas quando entramos em seu belissimo blog vemos que existe vida inteligente no mundo do taro, sem rivalidades e sem truques de projecçao da propria imagem. Parabens, Leonardo pela grande trabalho que tem feito aqui em nome do tarot e da cultura... Thamara

Alexsander disse...

Primoroso, profundo, emocionante,belo ... COMO SEMPRE. Leo, que texto maravilhoso!!! Parabéns ! Dá vontade de ler e lerde novo e lerde novo ... Vc flechou a gente com setas de Ouro e no coração ! Enamorou-nos, iluminou-nos e Transformou nosso momento,com certeza!

E como 13 - 6 = 7, foi mesmo direto e certeiro no ponto e nos mostrou mais um caminho. E como 13 + 6 = 19 foi só Luz e alegria.

Fiqueimt feliz em ler esse texto!

bjão meu querido amigo !!!

Glau O. disse...

AMOR = ROMA e, por que não, ROMÃ?