23 de julho de 2009

UM JOGO DE CLARICE




Alguém imagina Clarice sem poder escrever? Eu sim. Tanto que a chamei para um café. Convite aceito, deito o Tarô sobre a mesa. Caderno algum. Nenhuma caneta. Baralho e xícaras e mais nada. E mais todo o silêncio por cima.

Clarice frequentava cartomantes. Mas imagine a própria, esfinge ucraniana sem sua leitora de sorte, tomando as lâminas. Ela as toca. Eu as embaralho. E no inferno da dúvida ela se pergunta sobre essas figuras tão enigmáticas quanto ela. Imaginou? Eu também. 

Chego mais perto, então.




Incompreendida, Clarice solta os papéis de suas mãos furtivas. Pego a primeira, A Torre. Um desastre, ela deve pensar. Sim, essa é a carta de nascimento de Clarice, nascida Haia Lispector em 10 de dezembro de 1920. 

O Arcano 16 é a mais pura imagem da sua pessoa e da obra: a desconstrução do entendimento e do sentido humano, a ruptura com o factual que coloca até a subjetividade em dúvida. Incompreensões. Porque entender é um auspício de erro. E por que um raio nesse castelo estreito?




Daí me pego explicando que esse raio, esse castigo ou sinal de Deus, é uma súbita percepção da nossa verdadeira realidade. Da verdade real. Clarice não compreende. Ou compreende? Bom, se eu soubesse sua postura diante das cartomantes, diante das cartas, logo saberia responder. 

Talvez não.

O que eu sei é que Clarice não sabia rezar. Mas será que não rezava ao tratar do ovo? O ovo, sim, aquela coisa suspensa, aquilo que é a alma da galinha. Se era uma oração, devotadamente ela esqueceu: o ovo, pois, é um esquivo. 

Um esquivo da Papisa que teima em escondê-lo.




O mais curioso neste insight é o caso do 9 de Paus, arcano que ela tira do maço, olha e bate os cílios. A imagem de um homem com a cabeça enfaixada é outro motivo para Clarice estranhar a natureza das cartas mudas. 

Eu explico, recorrendo a um livro, que é um pedaço notável do seu mapa astral: Aleister Crowley associa o arcano à Lua em Sagitário. Uau, que medo. O "Senhor da Grande Força" é o que mostra uma pessoa adoecida recuperando-se. Indica boa saúde, mas com sérias dúvidas a longo prazo. 

É Clarice, que se queima no fogo divino. Mãos feridas. 

Escritas marcadas, rancorosas. Eternas.





Depois dessa, eu paro. Por ora.

Rápido jogo, eu sei. Clarice quer silêncio para ouvir melhor essas figuras. 
Anos e anos para compilar os registros desta conversa. Para perdoar Deus.

Haverá, na água viva do tempo. 
E até lá, eu respeito.






























8 comentários:

Anônimo disse...

saduades de ler o que vocÊ escreve, ÓTIMO, como sempre, apesar deu ainda achar que voce deveria chamar a dona flor para um café.

Anônimo disse...

adoro Clarice, adoro Tarot, adoro vc. vc sabe manter a expectativa de um leitor e deleitar-se nela com esmero. parabéns pelos escritos. aposto que sua consulta deva ser maravilhosa tanto quanto seu site. um beijo carinho, Mari.

Anônimo disse...

poetico e fantastico

Zoe de Camaris disse...

Leozinho, o Café Tarot se tornou o melhor dentre muito poucos, comemore! Tudo está maravilhoso: o design, as idéias, os textos, tudo tudo tudo! Você está crescendo em PG, duca! E me sinto feliz por ter observado isso acontecer sempre com brilhantismo e tão rapidamente. Leo Chida, você é supimpa. Abra um frisante por nós, Zoe.

Fábio Arcara disse...

“Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora(...)Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando(...)Entender é a prova do erro(...)Entendê-lo não é o modo de vê-lo(...)Assim: existo, logo sei.” (LISPECTOR,C.O ovo e a galinha. Felicidade Clandestina, Rio de Janeiro, 1976)
A instabilidade de Clarice em cartas, em direcionamentos feitos pelo simples dom da leitura em reinterpretações da escrita. A variedade de leitura que Clarice nos apresenta. Desta vez pelo Tarot. Uma arte Macabéa. Criado por Leonardo. Grande Abraço.

Unknown disse...

E eu que passei tanto tempo e apenas hoje li esse post com a necessária inquietação...Novamente devo dizer que é um prazer ler o que você escreve e ouvir o que você não diz! Clarice é para mim uma indefinição! Nunca sei o que pensar dela e o diacho é que ela sempre me deixa sem saber o que pensar de mim! Obrigado!

Alessandra TRindade de Paula disse...

Amei! Sou artista plástica e professora de artes(somos colegas!) Jogo tarot desde os 11 anos. Maravilhosa suas asserções a respeito de Clarice! Parabéns, hj em dia é raro conhecer homens inteligentes, e sensíveis!

Anne Machado disse...

Que lindo texto e linda homenagem à Clarice. Como sempre você Léo Chioda nos encantando com seus textos de tamanha profundidade e sensibilidade. Aprendo muito com você sempre. Você me inspira em suas escritas e foi através delas que houve o despertar para o estudar e aprender o tarot com maestria. Dos arcanos, sem dúvida pra mim você é a Estrela. Obrigada por ser quem você é. Com carinho, Anne (Gaiatarot).