5 de outubro de 2012

O GRANDE MOMENTO DA VIDA


Mas não sou abençoada nem misericordiosa. Eu sou o que sou. 
Tenho um trabalho a fazer. E o faço! 
Escute: enquanto conversamos, estou lá fora buscando velhos e jovens, inocentes e culpados, 
os que morrem juntos e os que morrem sozinhos. 



É engraçado, mas, em dias bons, não penso muito nela. A cantora Tori Amos começa assim o prefácio de MORTE, deliciosa coletânea de histórias de Neil Gaiman (VERTIGO, 1997) protagonizadas pela segunda mais velha figura dos Perpétuos. O número do azar na sorte da Estrada Real. Arcano sombrio. A Ossuda. 13.


Talvez seja impraticável pensar nela com alguma demora e gravidade, a menos que seja iminente sua presença. Não se fala sobre A Inominável. Sempre causa desconforto. Se você já foi a um velório, me entende. O mórbido incomoda. Talvez justamente por ninguém saber ao certo como é o ambiente pós-passagem – me perdoem os visionários e religiosos convictos, mas o Mistério se mantém. Há vislumbres. Experiências indizíveis que tornam ainda mais valorosa sua contraparte, essa tal Vida. O estar aqui [ainda]. No Tarô, o décimo terceiro Arcano Maior trabalha por procuração. Ininterrupta. Geralmente horrenda, como manda a Peste iconográfica. Aparição temida. Pior é quando se pede o caráter de alguém e surge a Nefasta: aí tem, e o que tem não é brinquedo. Mas curioso é passear pela carta celeste pessoal e se deleitar com os infernos. Sim, estou falando de Astrologia. Digo suspirando que visito minhas Luas e alimento meus Escorpiões. Meu mapa tem [vários] tons de underground que me permitem transitar pelo negro com relativa harmonia. O macabro pode ser poético se houver cuidado e intuição. Convém lembrar de Saturno, que colabora com o verbo ceifar. Inerência. Já mapeou-se? E aonde fica o seu submundo? 


Relendo Death, de Frieda Harris.
Aleister Crowley Thoth Tarot | AG Müller, 1986.

Nas cartas de papel, voltando ao nosso oráculo visual do mundo, confesso ter um apreço extra pela Indesejada. A anatomia que Frieda Harris imprime é fascinante. Os bichos de baixo são importantíssimos. Manjar de peçonha para celebrar nossas catacumbas. Já Waite e Pamela Smith suscitam humor negro com a figura religiosa implorando por clemência. E causam ternura pela garotinha oferecendo flores ao cavaleiro negro. Inocência. Eis o grande momento da vida. Não há risco a cada passo? Sim, há. Riso também.


DEATH, poesia visual de Pamela Colman Smith.
Rider-Waite Tarot | US Games, 1971.


HADES EM MINIATURA

Morte é uma lição de escuridão. Já desmaiou? Eu já, e é estranhíssimo. Falei nos vislumbres e lembrei que sempre relacionei o morrer à síncope, que no grego súgkopê significa 'corte, fragmentação em pequenas partes'. Pequenas mortes? Só sei que a experiência é o cúmulo do conforto, pelo menos até o momento em que se emerge desse sono divino. Dói voltar. Thánatos, do gênero masculino no mesmo idioma, é irmão de Hipno, o próprio sono. Significa 'dissipar-se, tornar-se sombra'. Etimologicamente, cavalgamos até equívocos e inovações que nos fazem chegar a 'morrer' no sentido de 'ocultar-se'. Ser como a sombra. Esquecemos [ou não nos damos conta] de que na Grécia o morto era eidolon, um retrato de brumas. Insubstancial. Tecido projetado do que um dia respirou. Simulacro. 




Mas veja, o que interessa aqui é a descida. Morte, numa leitura intimista [como se houvesse alguma que não fosse], nos faz um convite à catábase. Coisas a serem revistas, repensadas, reorganizadas, rechaçadas. De simples a Jornada do Herói só tem o roteiro. Inenarrável quando se fala do Vale de Sombras; um presente sempre diferente. A floresta negra sempre se bifurca. Chama e engole. Degrau a degrau, até o fundo. Daí o questionar de cada instante e atitude. Momentos memoráveis aqueles em que a foice vem rente aos olhos. Alerta vermelho à crisálida. A limpeza da alma deveria passar pelo porão. É a lâmina que extirpa o negativo e o regressivo ao mesmo tempo em que nos libera. 

O que te mata, te fortalece [o espírito]. Esquecemos do poder de renegeração, ainda mais que o termo transformação continua sendo moda nas casas e publicações esotéricas. E aí o palpável também fica no escanteio: morte é símbolo. Coisas morrem, sentimentos. Falta uma didática do perecível, não acha? Cada dia passa com mais coisas abarrotando armários.  A Ceifeira sorri a todo e qualquer desapego, tenho certeza. Deixar apodrecer é tão divino quanto criar. Morte é oportunidade, não um fim em si. Nos abre portas, por mais difícil que seja cruzar o reino de baixo. Negligenciamos a riqueza do deus temido; Plutão, aqueles que poucos cultuavam e que rege as mais belas sagras. O que reluz brota do breu. Símbolos complexos ao longo das eras. Valiosos a toda e qualquer existência significativa. Faz valer a concepção da soberana que porta a vida: Não tem Death como adereço primordial o ankh no pescoço? Não determina nada, apenas faz o seu papel. Gentileza contida. Amor concentrado. Mors ianua uitae. Parteira na escuridão. 




The Sound of Her Wings, em The Sandman: Preludes & Nocturnes. 
Vertigo, 1995.

Embora seja o hades um univeso em si, Neil Gaiman não fornece coordenadas geográficas precisas sobre os domínios de Morte. Gênio. Assim deve ser. Em algumas histórias paralelas, quando encarnada [a fim de sentir melhor seu ofício], administra um apartamento bagunçado, mas nada proporcional ao reino de Morpheus, aos jardins infinitos de Destino ou as salas lúgubres de Desespero. Nem ao antro de arco-íris, peixinhos cantores e sofás de caramelo de Delírio. Mas o engraçado mesmo da nossa girl next door é que todo mundo a imagina de alguma forma, que logo se esvai. Antropomorfa, mas volátil. Par a par com o Diabo, cada dia mais diáfano. Forças, nem sempre personificações. 


O QUE SE LEVA DESSA VMIODRATE



The Universe is Change; every  Change is the effect of an Act of Love; all Acts of Love contain Pure Joy, tece crowley em seu Book of ThothPois é, guarde bem: A Morte, Arcano Sem Nome, prescreve o enigma no clichê: aproveite sua vida, ela é o grande momento. Aproveite com [todo o] amor: Eros é tão visceral quanto Thanatos. A parteira, a última a morrer, pode esperar. Intermitente. Haverá sempre o encontro marcado com cada um. E então a dança.  Terrível e linda em proporções aproximadas. E já que todo eufemismo é mero conformismo, todo mundo a concebe.  E o melhor é que, cedo ou tarde, todo mundo a descobre. Cheiro de flores brancas ou chama azul no canto do olho. Plural e única. Certa.



Death | The Vertigo Tarot.
Dave McKean. DC  Direct, 2001

http://instagr.am/p/QZ-TLhB_FP/

Mesmo em dias muito bons, penso um tanto nela. Engraçado.
Só sei que este ensaio nunca nasceu, mas sempre esteve aqui. Tal qual ela, atenta. Vai dedicado à minha irmã mais velha amiga Giane Portal, oráculo Vertigo indiscutível, que esteve comigo enquanto lia toda a jornada de Sandman – tipo Death acompanhando Dream pelos reinos e praças, alimentando os pombos. Permeia o acaso objetivo, se penso em Breton. What are you doing? Harmonia existencial. Supercalifragilisticexpialidocious! E vem às vistas justo agora que Saturno entra em Escorpião.

Curiosamente.



Die daily,


L.





4 comentários:

Jordan M. C. disse...

Interessante quando você fala que dói voltar. Lembrei-me que é recorrente dizerem nas academias e até em conversas informais que doloroso mesmo é o nascer, é traumático. O morrer parece mais brando, fluido e silencioso, como a figura do "Arcano sem nome" e seus "setenta e sete companheiros". O estardalhaço somos nós. Mais um texto seu como ponto de partida para reflexões e contemplações (silenciosas, se possível).

gianeportal disse...

If we do or die, we should try
If we don't try, I say bye-bye
And if I say bye-bye, I'll wonder why
We didn't try to do or die

SUPER FURRY ANIMALS - DO OR DIE

Unknown disse...

muito legal.
fiquei lembrando de hades e de Shiva. O mito de perséfone envolve catábase e anábase e tem forte ligação com a zona de complementariadade morte-vida, ou a fecundidade que brota do escuro húmus. a riqueza dos minerais, tesouro do hades e abundância das colheitas.
outra coisa que me passou pela cabeça, estava vendo ontem um documento especial de 1989 um programa de investigação jornalística que não se faz mais. num dos momentos mais chocantes e grotescos da reportagem, um pastor da IURD convoca toa sua platéia para cantar uma musiquinha para a entidade que estaria incorporada ali. o Sr. Exu Caveira. e todos cantam em unissimo: exu caveira bobalhaooo olha a cara deleeee, exu caveira bobalhao.... problemas com a morte. problemas com o outro lado, o lado esquerdo...no final das contas problemas com MULTIPLICIDADES

Unknown disse...

Eu acho que o seu site é muito bem feito, você encontrou belas fotos e vídeos engraçados!
adeus muito em breve!

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