1 de março de 2016

AS ÁGUAS DE MARÇO



El temps i la natura es passen llibres,
i l'aigua rega el cine amb una altra aigua.

Joan Brossa



Março é a TEMPERANÇA — o ofício da água. Um verso catalão a Tarkovsky. O que destoa; o que completa. O Espelho. Março dos dias do ouro. As cartas se mantém numa sua estrutura fechada, intocada em todas as línguas — impassível no coração dos ateus e no infinito mistério. Corpus hermeticum vestido a cores. Um poema. Mas sua paisagem é móvel, em reajuste incessante. O oráculo é água em Março: uma janela em Veneza, escancarada ao Canal Grande. Uma ponte, um suspiro rearticulado no abdome do destino. Ás de Circe transbordando veneno — copa de amor, que mata na mesma intensidade. 

TEMPERANTIA para latinos letrados. Dos gregos a vasta Sophrosyne. É o mês de fechar o verão; de renovar as próprias águas. Heráclito de si diante de quem não presta e do que segue o percurso do abismo. Dignificar as chances de rojar o melhor jarro — enxergá-lo, bebê-lo. O Graal nas mãos de Março. De saber a justa medida em meio a críticas equivocadas, opiniões capazes e fôlego faltante. Os dias de fortificar a mão que brinda e mistura: ser concomitante, como Clarice em 'Água Viva', que reúne em si o tempo passado, o presente e o futuro. A profusão e seu verbo líquido. Ânfora absoluta na moldura, já que 'o mais profundo é a pele', segundo Valéry. Na água. Animal fluido, indomável — as patas devem estar na paciência. Todas.


Medir, aliás, o quanto se deixa levar pelo fluxo em vez de coordenar o rio por inteiro. O quanto se prende a algo ou a alguém em vez de bramar pela liberdade. TEMPERANZA, amore mio. A flor do amor próprio. A oxigenação dos meandros. Agir um tanto mais pela beleza do acaso — abraçar e agradecer — sem dar ouvidos ao horror do estrito estipulado. Veracidade na amálgama, na lida: o maremoto e o orvalho pressupõem coragem constante. Fazer bem e bem além do compreensível. Do comum. Além do aquém. Arcano de cura para cicatrizes doces, para tecer o mês conforme deságua a mágoa — há de se ler, nas pedras lavadas, um vislumbre de excelência. Sol & Fama. E comer muito bem em Março. Perseverar na delícia, na correnteza. Diluir-se para alcançar a solução do mundo. 
Sim. As cartas se aglutinam em livro aberto. Contam tudo o que não se quer ver, emaranham as paisagens e gozam — um poema. O conúbio e o próprio gozo. Quem batiza é a água. La TEMPLANZA. É o magma no cinema oceano. É o coração de Frida: um animal que ferve. 

As águas de Março. Uma outra água.


© Leo Chioda para Café Tarot
Le Tarot de Jacques Viéville {1650} ● Bibliothèque Nationale de France

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