23 de abril de 2012

SALVE, JORGE!






 O dragão nunca é mais forte que o Cavaleiro.
Mas nem todos sabem que são Cavaleiros.




Salve, Jorge!




IMAGENS

. Matthäus Zasinger, circa 1500.
. Kat Black, U.S. Games, 2003.

3 de abril de 2012

MANUAL PRÁTICO DE COMBATE AO VALETE DE ESPADAS


Detalhe do Pajem de Espadas | Rider-Waite Tarot, U.S. Games, 1971.



INSTRUÇÕES SIMBÓLICAS INICIAIS
_
Tenho revisitado o baralho de Aleister Crowley e Frieda Harris na companhia do sensacional 'Understanding Aleister Crowley's Thoth Tarot' de Lon Milo DuQuette (Weiser Books, 2003). Me debrucei sobre o arranjo iconográfico das armaduras, dos tronos e piras das figuras da Realeza, em específico sobre o da Princesa de Espadas — uma das poucas personas que não olham para quem se dá à leitura de imagens. A pequena cabeça repleta de cobras no alto do seu elmo remete à Medusa, famosa criatura mitológica tantas vezes incompreendida. Tal qual este arcano menor, cujos atributos negativos se sobressaem e o mantém quase sempre indigno de qualquer elogio.

Princesa de Espadas e detalhe do elmo | Thoth Tarot, AG Müller, 1986.

Quase, pois representa a parte terrosa do ar, a materialização das ideias. Se em Waite a lâmina atua como um pára-raio, em Crowley (só) a posição da arma é outra: 'Fixation of the Volatile', a espada voltada para o chão. Destreza em tornar viável aquilo que imagina. Brainstorms consideráveis, se bem trabalhados. Mensageiro(a) de novidades importantes. Do imaginável ao palpável. Ponto para a górgona, aludindo ao poder de transformar em pedra aqueles que sucubem ao seu olhar penetrante. Mas sua atuação nefasta é mais nítida e frequente, não há como negar.

Fleishman’s “Medusa” | Dark Mysteries #9, Master Comics, 1952.

 
COMO IDENTIFICAR UM VALETE DE ESPADAS
 
Criaturas invejosas, fofoqueiras, manipuladoras, vingativas e falsas — a ponto de sorrir de satisfação no pior momento para alguma ou várias pessoas — estão, certamente, regidas pela lâmina. Estas mesmas pessoas também carentes, medrosas, iludidas, vitimizadas, presunçosas e inseguras por trás de uma máscara de imponência estão sob a égide da pequena majestade de Espadas. Pela ótica oracular, se convencem do sucesso absoluto com a pretensão de serem Rei ou Rainha do elemento; se possível algo ainda maior e mais importante. Se alimentam de êxito e fracasso alheios e regurgitam veneno verbal. Olhos dissimulados de fúria e um pé na psicopatia. Ou dois.

A lâmina empunhada é a bandeira das tentativas previsíveis de sedução e conquista. E também da convicção de que são espertos e infalíveis em seus empreendimentos egocêntricos e em suas competições infundadas. Só que esperto é o ignorante que se acha inteligente. Daí a sensação de estarmos diante de um vilão brega cuja forma somente esse tipo de caráter consegue projetar. Macumba sem nenhuma classe.


PREPARANDO-SE PARA O COMBATE


A Medusa só pode ser degolada pelo poder da imagem refletida, 
pois quem a contempla diretamente é sobrepujado pela própria escuridão que possui.

Liz Greene 


Luke Cage & Medusa | Marvel, 197?.

A melhor maneira de desarmar alguém sob os domínios desta carta [que se acha] tão afiada é encarando-a. Sim, olhando de frente sem medo de virar estátua. Um Valete desse naipe pode ser descompensado na medida em que você se vê livre de todo e qualquer medo de suas investidas. A atitude mais sensata é bancar um espelho silencioso para que o feitiço supreenda o(a) feiticeiro(a). Devolver na mesma retina. Afinal, o que é um Pajem de Espadas se não uma criança faminta por liderança, influência, segurança, carinho e atenção constantes? Em seguida, sugiro dar uma de Perseu e cortar relações — da mesma forma que o herói separa do gélido pescoço a cabeça de serpentes num golpe de persistência, coragem e sabedoria (valha-nos, Athena). Pequenas atitudes, grandes reações: assim é que se torna possível abalar as estruturas do Trono do Ar.

Perseu (Sam Worthington) com a cabeça da Medusa | Fúria de Titãs, Warner Bros, 2010.

Porém, peço encarecidamente para não culpar o Tarot quando você se deparar com Medusas por aí. Como todos os outros 77, este arcano tem suas qualidades asseguradas em diferentes níveis de atuação e contexto narrativo. Há muito tempo, durante uma leitura, a consulente elencou a Princesa de Espadas ao ter escolher um arcano sobre ela mesma. Levando em conta que Medusa é uma figura intimamente associada à menstrução e aos poderes obscuros de toda mulher, confirmei que ela descobriu sozinha e com desconforto o próprio corpo e seus mistérios.
Cresceu praticamente desamparada, tendo apenas um apoio básico pra se tornar adulta e confiante em seus passos. The Winding Way. Mas rege também aquelas pessoas criativas, de imaginação livre leve e solta. Aquelas que sonham alto e muitas vezes são tachadas de ambiciosas e irresponsáveis por não medirem consequências. Aqueles que seguem passos de tiranos que se deram bem. Garotas que massacram garotos por pensarem só com a cabeça de baixo. Meninos que repreendem as namoradinhas por serem melosas e sentimentais e que humilham os amigos por não serem tão firmes no que dizem e fazem. Crianças que dominam a linguagem e moldam um brilhante perfil intelectual. Superdotados infantilizados pelas influências do meio que resolvem equações cúbicas mas não sabem arrumar a cama ou espremer um limão.

Um mundo de possibilidades em uma carta só, como acontece com todas as demais. Diferentes pontos de vista são necessários, daí a analogia enriquece. O combate só adianta se for contra o preconceito pelo que a imagem carrega, denuncia ou sugere. Melhor vê-la como um amuleto que petrifica quintas intenções alheias e afasta o malocchio, como tem sido perpetuado o poder da Medusa entre os que respiram Magia. Ícone de proteção. Justamente por esses motivos afirmo que encará-la sempre como uma carta "encardida" é o mesmo que limitar o seu desempenho simbólico. Se você não vai com a cara dela, vale o conceito de Nêmesis: ela deve estar brincando de reinar em algum beco da sua personalidade. Ou nos céus.

Looks can kill.



EPÍLOGO
_
Não, este arcano não deve ser levado assim, a ferro e veneno: sua contraparte luminosa — viva no arrojo das ideias e na destreza com que manipula informações — também se sobressai. Às vezes. E não, não publiquei este singelo manual pensando em alguém especificamente. Mesmo assim, em algum momento da vida, a carapuça nos serve. Não importa o tamanho do elmo. Nem o formato.


Gorgoneion,

29 de março de 2012

O LOUCO


UM ESTUDO ICONOGRÁFICO DE ANDREA VITALI


Il Folle | I Tarocchi di Ercole I d'Este, Ferrara, séc. XV.

A loucura, de acordo com a concepção comum, é o “agir sem razão”. Cesare Ripa, famoso iconógrafo perugino, assim define a “Pazzia” na Iconologia de 1603, sua mais importante obra: "Não é nada além de louco aquele que, segundo o nosso modo de falar, faz as coisas sem nenhum decoro e fora do uso comum dos homens por privações de discurso sem razão verossímil ou estímulo religioso". No Evangelho, o homem que não crê é considerado louco, e assim, várias figuras de loucos acabam aparecendo nas bíblias dos séculos XV e XVI com o intuito de ilustrarem o Salmo 52 "O tolo diz em seu coração: não existe Deus!".



Gravura antiga do Louco



(1) A figura do Louco. Xilogravura da Biblia Sacra Vulgatae Editionis Sixti Quinti Pont. Max. (Veneza, Damianum Zenarum, 1603).





Foi encontrada em uma bíblia do século XVI a mesma representação do louco que se encontra no Minchiate de Firenze (figura 1): um homem vestido com trapos, com penas nos cabelos e um cavalo de pau; tem em uma mão um giro e em torno dele aparecem crianças (figura 2). Ripa fornece uma idêntica descrição: "Um homem de idade viril e de vestes longas estará rindo e cavalgando sobre um pau, tendo na mão direita um gracioso instrumento giratório feito de papel e rodeado por crianças”. (figura 2b)



Il Folle no Minchiate de Firenza O louco na obra iconográfica de Cesare



(2) "Il Folle" no Minchiate de Florença (sec. XIV) e (2b) na obra iconográfica de Cesare Ripa (1560-1622)



O riso do Louco que se encontra no baralho de Carlos VI e no de Ercole I d'Este é, ainda de acordo com Ripa, "facilmente indício de loucura, segundo o dito de Salomão; mas se vê que os homens considerados sábios pouco riem e Cristo Nosso Senhor que foi a verdadeira sabedoria e sapiência, não ri jamais". Uma gravura anônima de 1500 mostra um louco que ri diante de um anjo que fecha os olhos com as mãos para não ver tanta vilania (figura 3).



Na lâmina do Visconti-Sforza, o louco traz as penas sobre a cabeça e carrega um bastão sobre o ombro (figura 4). Uma figura similar foi pintada por Giotto na Capella degli Scrovegni na cidade de Padova, como uma figuração da Stoltitia (Tolice) (figura 5). Nesta gravura, o louco tem entre os lábios um objeto que praticamente o impede de falar. O conceito de loucura nesta alegoria vem ampliado pela presença das plumas sobre a cabeça do personagem. É prudente considerar que asas, plumas e penas representavam, para os antigos, os símbolos da velocidade.



Louco - gravura de 1500 O Louco no Tarô Visconti Sforza Pintura Giotto



(3) Gravura anônima de 1500, (4) o Louco no Tarô Visconti Sforza e (5) a "Estultícia" de Giotto



Vincenzo Cartari (1531-1569), famoso mitógrafo italiano, em sua obra Imagini de gli Dei de gl'Antichi (1647) trata repetidas vezes dos atributos de Apolo-Sol. Entre estes as asas e as plumas também significam a velocidade da inteligência de Apollo e do percurso do Sol. A propósito da presença de plumas sobre a testa de Mercúrio, o autor se explica desta forma: "Foram dadas as penas a Mercúrio porque no falar, de quem era o Deus, as palavras voam pelos ares como se tivessem asas. Homero sempre chama pelas palavras velozes, aladas e que portam penas". As penas presentes sobre a cabeça do louco representam portanto, o que falta a ele próprio, que é a velocidade da inteligência e do intelecto e também das palavras adequadas. De fato o lacre na boca do tolo, como concebeu Giotto, assume essa função, pois se não o tivesse, diria apenas tolices, como descrito na passagem bíblica "O tolo é arruinado pela própria língua. As primeiras palavras de sua boca são besteiras e o fim do seu discurso é loucura" (Eclesiastes 10:12, 13).



No tarô de Ercole I d'Este, o Louco aparece praticamente nu. Devido a isso, Ripa escreve que “a Tolice se pinta nua porque o louco releva os seus defeitos a todos, sem vergonha alguma". No dito tarô de Carlos VI, o Louco porta em sua cabeça um gorro com duas grandes orelhas de burro que por sua vez referenciam sua natureza bestial e veste uma modelo de cueca incrivelmente moderno (figura 6). A imagem é bastante similar a uma de outro Louco estampado em um documento bolonhês da segunda metade do século XV (figura 7) que traz só o bastão, mas de modo que pareça perfurar sua mão (relação alegórica, portanto, às chagas de Cristo).



O Louco no Tarô Carlos VI (Gringonneur) Louco - gravura do sec. XV O Louco "Misero" no tarô de Mantegna



(6) o Louco no Tarô Carlos VI, (7) em uma gravura do séc. e (8) no Tarô de Mantegna



Uma variação iconográfica sobre a representação do Louco se encontra também no dito tarô de Mantegna, onde a figura de um miserável acaba sendo agredida por um cão na panturrilha (figura 8). Esta tipologia figurativa permanecerá estável em todas as produções seguintes do tarô. Acima do bastão apoiado sobre o ombro aparecerá uma espécie de trouxa. A presença de um cão próximo ao miserável viajante é típica na arte figurativa medieval, não se distanciando muito da realidade objetiva, quando esse animal ladrava e avançava sobre os vagabundos que se aproximavam das casas para pedirem caridade. Um famoso exemplo se encontra na representação do Filho Pródigo (figura 9) e do Caminho da Vida no famoso tríptico de Hieronymus Bosch. Interessante notar uma figura do século XV de Israel van Mecknem (fugura 10). O simbolismo diabólico relacionado aos instrumentos de sopro - flauta e gaita de fole, em oposição aos "celestes" instrumentos de corda - confirma o caráter negativo da gravura. Por outro lado, a presença do cão aproxima a natureza do bobo à do miserável, criando uma ponte entre as duas variantes iconográficas.



O Peregrino de Bosch O Louco numa gravura de



(9) "O Filho Pródigo" de Hieronymus Bosch e (10) gravura Israel van Mecknem (séc. XV)



Neste ponto se considera um outro aspecto da loucura, aquele ligado à visão místico-sagrada. A Epístola aos Coríntios teve no Renascimento uma grande importância. Alguns de seus passos refletem a relação existente entre a Loucura e o Divino: "A palavra da Cruz para aqueles que se perdem é uma loucura" (I, 1, 18); "Não se enganem: se alguém entre vocês acredita ser sábio pela sabedoria deste século, torna-se tolo por ser sábio. Pois que a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus" (I, 3, 18-19). Somente a renúncia de si e dos próprios bens materiais poderia, segundo o pensamento cristão, conduzir o homem a Deus. O louco, por essa razão, era às vezes considerado um inspirado, portanto, prostrado a um passo da divindade.



Sobre essa divindade do louco em relação ao tarô, é esclarecedor um soneto anônimo do século XVI descoberto na Biblioteca Estense, em Módena. Para conquistar o coração de uma dama da corte, o autor anônimo afirma que é necessário extrair uma carta do maço apenas: a do Louco, “aquele da cabeça divina”. Por esse motivo a mais antiga lista de tarôs conhecida, o Sermones de ludo cum aliis, acomoda "El matto" junto a "El mondo", isto é, a Deus Pai.



O pensamento escolástico, que desejava valorizar a verdade da fé por meio da razão, acabou incluindo à categoria dos loucos, como já evidenciado, todos os que não acreditavam em Deus. E no tarô a presença do Louco conquista um significado ainda mais profundo: enquanto possuidor da razão, mas não crente, ele deveria se tornar, através dos ensinamentos contidos na Escada Mística (veja), o "Louco de Deus", como se tornou Francesco, o santo popular da cidade de Assisi, que foi chamado: o Santo Louco de Deus. O louco, sem numeração nos maços históricos, transita entre o profano e o sagrado, capaz de coabitar a miséria e também de gozar a transcendência.


Tradução do italiano por Leonardo Chioda e publicado originalmente no Clube do Tarô.

Andrea Vitali | LE TAROT Associazione Culturale

20 de março de 2012

A DAMA [DE ESPADAS] DE FERRO



Sabe, um dos grandes problemas da nossa época é que somos governados por pessoas que se importam mais com os sentimentos do que com pensamentos e ideias. Pensamentos e ideias. Isso me interessa. Pergunte-me o que eu estou pensando.

O que você está pensando, Margaret?

Cuidado com seus pensamentos, pois eles se tornam palavras.
Cuidado com suas palavras, pois elas se tornam ações.
Cuidado com suas ações, pois elas se tornam hábitos.
Cuidado com seus hábitos, pois eles se tornam o seu caráter.
E cuidado com seu caráter, pois ele se torna o seu destino.

O que nós pensamos, nós nos tornamos.
Meu pai sempre dizia isso.




Meryl Streep como Margaret Thatcher em A Dama de Ferro, dirigido por Phyllida Lloyd. Uma aula brilhante sobre A Justiça e sobre a Senhora das Lâminas regada a chá e doses cavalares de talento de uma das maiores atrizes de todos os tempos.

Em exibição nos cinemas.


La Justice | Margaret Thatcher
fineartamerica.com


3 de março de 2012

A FONTE DA TEMPERANÇA




À destra cristalina fonte murmureja,
numa clareira margeada de gramíneas.
Aqui a deusa sempre descansa da caça
e banha os membros virginais em água límpida.
Quando na gruta entrou, deu a uma das Ninfas
o escudo, o dardo, a aljava e o arco distendido;
outra nos braços recolheu a sua roupa;
duas lhe descalçaram os pés; a mais sábia,
a ismênide Crócale ata-lhe os cabelos ,
antes à nuca, embora ela os seus soltasse.
Néfele, Ránis, Híale, Fíale e Pseca
apanham água e vertem-na com grandes ânforas.

Ovídio | Metamorfoses, Livro III.

La saletta di Diana e Atteone | Parmigianino, século XV.



O tarô vai muito além daquilo que mostra e ainda mais longe daquilo que esconde. Para se ter ideia do poder da metáfora, um trunfo pode sugerir muito mais relações iconográficas do que uma leitura de imagens pode imaginar alcançar. Uma operação alquímica se estabelece entre fontes pictóricas de várias naturezas e possibilidades. A arte das cartas é, por excelência, a arte da combinação.

Tenho visto há alguns anos um trunfo curioso em diversos fóruns e publicações importadas. Ele faz parte do dito tarocchi de Alessandro Sforza, do século XV, preservado na coleção do Museo Castello Ursino em Catania, na Sicília. Debruçando-se sobre a lâmina a partir de um olhar simbólico, pode-se perceber que a figura feminina está bem acomodada sobre um cervo. Em suas mãos, prováveis ânforas tendo seus conteúdos misturados. TEMPERANZA, como bem se conhece. A dinâmica dos braços confirma o protótipo do décimo-quarto Arcano Maior.


La Temperanza | Tarocchi di Alessandro Sforza di Maestro Ferrarese (1450-1480). Museo di Castello Ursino, Catania.



Existem certos códigos aparentemente inacessíveis nestas pranchas antigas. Por ora deixo Sophrosyne (o conceito de moderação para os gregos), assim como os elefantes de Cesare Ripa e Etteilla. Somente um banho de pesquisa pode desencadear certa coerência de significado. Ou no mínimo um encantamento visual: pode-se configurar de tudo nestas cartas. Ater-se à mulher nua como uma representação de uma deusa é um mergulho no rito combinatório de atributos e sentidos. Um Olimpo pode ser escavado nos arcanos, mas com a necessária distância para não conjurar o caos simbólico. Assim o caráter divino dessas figuras nômades toma forma e complementa o esboço histórico.

Temperantia | Cesare Ripa, 1603.
La Temperance
| Grand Etteilla II, 1838.



Esta mulher sobre o gamo é Diana, a inspiradora deusa da caça. A virgem donzela que corre no Nemi. Embora não haja resquícios do crescente lunar sobre sua testa, a analogia é absoluta e perdura.
Diana sorpresa al bagno da Atteone | Cavalier D'Arpino, século XVI.




Acteon era um excelente caçador que se aventurava pelas florestas. Filho de Aristeu e neto de Cadmo, teve um destino nada invejável: ao cometer a indiscrição de admirar Diana se banhando junto ao seu cortejo de ninfas, pagou caro pela ira da grande deusa, que o transformou em um cervo. Logo em seguida, seus cinquenta cães não o reconheceram e o devoraram. Eternizada nas Metamorfoses de Ovídio, a fábula serve quase de atalho para o conceito que hoje se atribui ao décimo-quarto Arcano Maior. Em Camões também se dá o caso, o que tonifica o poder do mito indo além das Belas Artes.

Enquanto aí, à linfa, se lava a Titânide,
eis que o neto de Cadmo, deixando o trabalho
e errando em bosque ignoto com incertos passos,
chega ao recanto sacro; assim quis o destino.
Tão logo entrou na gruta úmida de fontes,
as ninfas nuas, vendo o homem, tal como estavam,
os peitos batem, e de súbito alarido
enchem o bosque, e rodearam a Diana,
cobrindo-a com seus corpos. Porém, é mais alta
a deusa que elas e ultrapassa-as, colo acima.
A cor, que sói tingir as nuvens quando o sol
as fere pela frente ou a da aurora púrpura,
foi a do vulto visto sem véu de Diana.
E ainda que o seu séqüito a rodeasse,
ela mostrou-se oblíqua e virou a cabeça
para trás; desejando ter à mão as setas,
a água que havia asperge no rosto do homem.
Molha os cabelos dele com água ultriz,
e lhe anuncia assim a iminente ruína:
“Agora, conta que me viste sem a veste,
se puderes.” Sem mais ameaças, espalha
na úmida testa chifres de cervo longevo,
estica-lhe o pescoço e aguça-lhe as orelhas,
muda em patas as mãos, e os seus braços em pernas
longas e com manchado pelo o corpo cobre-lhe;
e lhe põe medo. Foge o herói autonoéide
e admira-se de ser tão veloz na corrida.
Quando deveras vê o rosto e os chifres n’água,
“Infeliz de mim” quis dizer, e a voz não veio;
gemeu, e a voz foi isso; e em face alheia lágrimas
fluíram. Só sobrou-lhe a primitiva mente.


Acteon e Diana | Detalhes do afresco de Parmigianino.



Ainda sobre o arcano de Alessandro Sforza, Diana verte o cálice sobre o seu próprio sexo, coberto bela mão esquerda. Essa passagem serviria de ensinamento devido à práxis da época, quando se pretendia basear-se na mitologia para aplicar uma filosofia moral. A imagem mostra que o conceito da virtude vai além de domar a sensualidade e os prazeres carnais. Essa concepção iconográfica tonifica o conceito do rito de Anados, quando a deusa emerge anualmente e enaltece a própria virgindade banhando-se em uma fonte sagrada. O gesto talvez esteja longe de ser uma tentativa de controlar os ardores do sexo, mas sim a expressão clara da renovação da sua pureza virginal ao ligar os líquidos da terra com os seus próprios fluidos. Água e Água.



Temperantia | Gravura de Hans Collaert, 1557.



O final trágico de Acteon dialoga com a ideia da deturpação da virgindade de uma deusa por um mortal. E sendo o cervo a personificação do “esposo divino” sempre em busca de pretensas esposas e da fonte em que possa matar a sua sede, a transfiguração do homem em animal tem sua razão poética. Entende-se que foi uma atitude coerente a de Diana, dada a ousadia do caçador em profanar seu rito de purificação partilhado apenas entre as ninfas. A face cristalina da deusa se impõe.


Diana e Atteone | Matteo Balducci, século XVI.


Circundam-no e enfiam-lhe o focinho ao corpo,
dilacerando-o sob falsa imagem de cervo,
até que por feridas mil morrendo, dizem,
a ira de Diana Arqueira saciou-se.
A opinião se dividiu: a uns a deusa
pareceu mais cruel que o justo; a outros, digna
de austera virgindade. A razão tem dois lados.


O valor moral do episódio denuncia, portanto, uma postura temperante necessária: o homem deve domar os próprios instintos para atingir as águas da moderação. O cervo também assume a suavidade animal, que prefere a solidão aos tumultos da floresta. Serenidade, parcimônia e medo, outro atributo do temperante – o exagero é indigno. E a ira da deusa não pode ser confundida com perservidade tal como foi encarada por artistas e poetas desde a época de Parmigianino. A cada um aquilo que lhe cabe, simples e justo assim. Diana, mesmo em plena delicadeza prateada, é a regente do selvagem. Depois, preterida essa possível ligação da deusa para as futuras representações pictóricas da virtude cardeal (ao lado da Força, Justiça e Prudência), a Temperança assume o anonimato da alegoria, ainda que feminino. É todas elas, então.




Afresco encontrado na Hungria nos anos 2000, atribuído a Botticelli.



Diana, a caçadora. Diana, a deusa lunar. A de muitos seios, conforme define a antiquíssima fonte italiana baseada na escultura encontrada em Éfeso. Por vezes a alegoria surge com um peito à mostra: a castidade dando lugar à abundância. E assim, com as mamas à mostra, Frieda Harris concebe uma das lâminas mais lindas e enigmáticas do Tarô de Thoth idealizado por Aleister Crowley, que por sua vez conecta à Sagitário a deusa alquimista: o Centauro lança um sorriso a Ártemis. Logo abaixo de suas faces, recebe uma flecha perfurando o arco(-íris) de seus ombros. A referência garante a presença da deusa na modernidade do Tarô. Uma homenagem da Besta às gerações futuras. A Senhora da Arte prevalece, definitivamente.


Fontana di Diana Efesina a Tivoli, Villa D'Este | Itália, século XVI.
Art | Crowley-Harris Thoth Tarot. AGMüller, 1986.




A Temperança é um ritual. Opera alchimica. A fonte de cura das atitudes, a oportunidade de administrar a vida de acordo com um código intuitivo de conduta, visualizando as reações para toda e cada empreitada. Só a intenção de misturar os fluidos já requer habilidade. E implica a contenção sobre os resultados. Mesmo que em algumas representações seja possível ver Diana em pose sexual com o caçador-cervo, definindo-o como o seu consorte, na maior parte das versões ele se contém. Consente o erro pela tentação ao assumir sua condição de animal.


Diana and Actaeon | Balthus, 1954.




Mas o tarô é humano, assim como os deuses em suas emoções e fervores. Vieram de nós na mesma medida que os Trunfos vieram da poesia. Esse aparente resgate da fonte divina das lâminas vale tanto para ressaltar sua força simbólica quanto para exigir respeito ao que foi e continua sendo sagrado. Em cada enigma de tinta embaralhado a esmo. Em cada um que o lê. Vida longa às referências históricas e literárias. Elas são fontes de analogias para embebedar o homo ludens sedento por velhos novos saberes.

Aliás, fechando com Crowley, essa fonte de sabedoria pode ser vislumbrada pelo aforisma Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapidem: visitar o interior da terra é a metáfora possível para o cerne de si mesmo. Retificar o controle absoluto dos próprios verbos, das próprias ações. Combinações da própria história. Mesmo que a narrativa se perca com o tempo e só um fragmento possa vir a sugerir suas relações mitológicas. A pedra filosofal é cristalina na justa medida dos jarros. Tanto quanto a face da deusa.





BIBLIOGRAFIA CONSULTADA


CROWLEY, Aleister. The Book of Thoth. Weiser Books, 1996.

FRAZER, Sir James George. O Ramo de Ouro. Círculo do Livro, 1986.

GRAVES, Robert. A Deusa Branca. Bertrand Brasil, 2003.

GRIMASSI, Raven. Italian Witchcraft. Llewellyn, 2000.

RIPA, Cesare. Iconologia. TEA, 2008.
REFERÊNCIAS | internetIl Parmigianino a Fontanellato: La favola di Diana e Atteone | Primo Casalini
http://www.arengario.net/momenti/momenti25.html
La saletta di Diana e Atteone nel Castello di Fontanellato | Raffaela Terribile
http://rebstein.wordpress.com/2011/02/28/diana-e-atteone/

'Metamorfoses' em tradução | Raimundo Nonato Barbosa e Carvalho
http://www.usp.br/verve/coordenadores/raimundocarvalho/rascunhos/metamorfosesovidio-raimundocarvalho.pdf

13 de fevereiro de 2012

TARÔ, GATOS E ALEISTER CROWLEY

Link

Giane Portal, astróloga, taróloga e gatóloga profissional, me fez saber da existência de um exemplar do
The Book of Thoth que ela tinha sobrando em casa. Edição da Weiser, a da capa azul cintilante e já esgotada. Justamente a que eu sempre quis. Eu, que até então só tinha aquela traduzida em português e lançada pela Madras, tão polêmica. Pois bem, a guria propôs uma troca: o livro repetido por algum outro. Ou mesmo um tarô.



Corri nos meus baús a procura de algum baralho que eu pudesse dispor em troca dessa preciosidade. Apresentei alguns e depois que ela escolheu o
Mystic Faerie Tarot, de Linda Ravenscroft e Barbara Moore, fechamos o negócio.



Somos loucos por gatos, quem é do meio sabe. Quem não é, também. Ela mais ainda, semeando a beleza divina dos felinos pelo mundo através das suas lentes. Fofuras sem fim. Resolvi fazer criar essa pequena postagem em troca (mais uma) do cartão de agradecimento que faltou ir junto com o pacote. Adorei receber o livro de Crowley embalado e customizado com tanto capricho que nem se compara ao meu embrulho. Mas o carinho é recíproco, isso é.



Temos conversado bastante e nesse momento percebo esse nosso gesto como uma celebração dos privilégios que o tarô proporciona aos profissionais sérios que sabem perceber em situações simples, nos meandros, o significado dos símbolos do afeto. Uma troca é uma metáfora da consideração e do respeito, tão necessária de ser assimilada nos dias de hoje, principalmente no nosso meio. E os gatos permanecem conosco, entre os cafés, as cartas e os livros.
Um pouco da expressão do nosso amor por "essas coisas". Amor sob Vontade.

Ah, e Alexandrino já está cheirando o livro todo!



Um beijo, Gi.
Amei.

FOFURAS FELINAS flickr
http://www.flickr.com/photos/fofurasfelinas/

Veja o momento da troca para a Giane clicando AQUI.

28 de janeiro de 2012

DESCOBRINDO E ENCARANDO A SUA NÊMESIS

Eu tenho a intuição, Aramis, de que os monstros
são as tentativas mais puras do Universo.
«Olha-os, e não os mates.»

Maria Gabriela Llansol



Galeria Real: de quem você mais gosta?
E de quem não gosta nadinha?


Bom, jogo rápido. Ando aprimorando um exercício que considero absolutamente importante para lidar com as cartas da Corte e também para traduzi-las em nós mesmos: a escolha do Arcano Significante. Vi pela primeira vez a menção há alguns anos no livro Understanding the Tarot Court*, assinado por Mary Greer e Tom Little, publicado pela Llewellyn. Embora seja apenas incentivada a escolha do Arcano Sombra, decidi ir mais a fundo na ideia de perseguição desse arcano indesejado e confesso que tem sido revigorante entrar em contato com o melhor e, principalmente, com o pior de mim. Incorporar o mais inofensivo ou insignificante [termo inevitável] integrante da realeza é um exercício de reflexão e transformação quase instantâneo. Bem apropriado para leigos e tarólogos.

Pegue o tarô que você mais gosta e retire as 16 cartas reais do resto do maço. Disponha e organize todas elas com as faces para cima, de modo que você possa ter um panorama bem nítido do mosaico de personalidades.

Esqueça as posições, os cargos, as nomenclaturas e até mesmo o gênero. Escolha a pessoa que mais lhe atrai, a carta que mais lhe "chama" neste momento. Este é o seu Significante, ou seja, o arcano que muitos usam em leituras para representar o consulente. Mas por que este arcano específico? Pronuncie suas qualidades e o motivo por tê-lo escolhido.

Agora escolha a carta que você MENOS gosta, a mais desinteressante, sem graça. Feia, até. E atenção aos motivos. Profira a razão por tê-la escolhido. Pronto? Esta carta é sua Nêmesis.


Nêmesis, pintura do romeno Georghe Tattarescu (1820-1894).

Nêmesis? Sim, a deusa grega da indignação, famosa por atributos mal dignificados. Apesar de vir da estirpe dos deuses trevosos, vive no Olimpo figurando a vingança divina. Filha de Gaia e irmã de Têmis, foi criada e educada por Cloto, Láquesis e Átropos, as famosas Moiras. Enquanto Têmis vem a ser a personificação da ética, Nêmesis acaba sendo a da vingança. Em outras versões do mito, difundidas por publicações neopagãs, por exemplo, Nêmesis surge como Adrasteia, a inevitável, por ser a divindade da retribuição.

Na obra O Livro e o Baralho Wicca*, de Sally Morningstar, a deusa aparece retratada como a portadora das lições, cuja visita (o surgimento da carta em alguma leitura) sugere que o leitor está tendo suas atitudes e intenções observadas por ela. A representação é agradável e até serve ao propósito: Nêmesis é o arcano que lhe persegue. O que você evita ver no espelho e jura de pés juntos que não tem nada a ver com você. As baixarias do show, as manchas no seu currículo interno.


Nêmesis pintada por Danuta Mayer
integrante do Baralho Wicca, de Sally Morningstar.


Face your fear! Fazendo uma menção bastante digna [pelo menos para quem gosta de videogames e filmes de monstros], Nêmesis é a máquina mortífera que persegue a policial Jill Valentine por Raccoon City que por sua vez persegue zumbis. Não há escapatória a menos que a moça encare de vez a criatura programada para destrui-la. A referência a Resident Evil foi inevitável também. Até porque jogos eletrônicos reconfiguram alegorias e instauram mitologias entre gráficos renderizados e o deleite constante do expectador.

Na verdade, esse sério trabalho com a sua personalidade ilustrada pela Nêmesis demonstra responsabilidade para com sua própria sombra. Bem-aventurado o que enfrenta a horta de desagrados internos, não? O modo como você aborda esta carta é crucial para reconhecer comportamentos absurdamente perversos e também algumas atitudes ridículas que podem ser transmutadas por meio de uma postura cada vez mais coerente com o seu autoconhecimento. Conviva um pouco com a sua Nêmesis. Indo além da ignorância você pode achar o antivírus para os padrões mais nocivos de existência. Refletir é a matéria e o ofício principal dos arcanos. Ainda mais quando é a sua imagem nesses espelhos.

Enfrente[-se].
E bons sustos,


L.





*
GREER, Mary K. LITTLE, Tom. Understanding the Tarot Court.
Special Topics in Tarot. Llewellyn, 2004.

MORNINGSTAR, Sally. O Livro e o Baralho Wicca. Ilustrações de Danuta Mayer.
São Paulo: Editora Pensamento, 2002.